John Banville conta uma joke com piada sobre dois homens que se conhecem numa festa. Um deles pergunta ao outro:
- Qual é a sua profissão?
- Sou escritor!
O que perguntara pensa por um momento e depois comenta:
- Quando me reformar também vou escrever umas coisas!
É então a vez do escritor se mostrar curioso:
- E a sua profissão, qual é?
- Sou neurocirurgião!
- Tem piada! - responde o interlocutor - quando me reformar conto operar umas quantas cabeças!
A história é eloquente na demonstração do pouco crédito dado por alguns ao duro ofício da escrita. Como se fosse fácil sentar-se à frente da folha em branco e criar mundos, que nos façam sonhar, refletir, conhecer ou indignar.
Não é que seja atividade rentável: se para sobreviverem estivessem á espera dos 10%, que ganham com cada exemplar vendido pelo editor ao livreiro, bem poderiam contar com morte certa à fome. Mas a verdade é que há muita gente a escrever. Zeferino Coelho, editor da Caminho, é disso testemunha: se anualmente são publicados milhares de livros em Portugal, os que chegam aos editores, como propostas para publicação, dariam para multiplicar esse número muito significativamente.
Há, pois, imensos aprendizes de feiticeiro que passam o dia inteiro a trabalhar em empregos extenuantes e, chegados a casa ao fim do dia, em vez de descansarem, encontram realização nas páginas, que se vão somando umas às outras e a ganharem a dimensão do romance.
O que os leva a esse duro labor raramente reconhecido com a chegada as escaparates? Talvez a mesma razão que o violoncelista Yo-yo-ma tentou saber dos bosquímanos do Calaari a quem perguntou, porque passavam noites inteiras a cantarem e a dançarem. “Porque nos dá sentido à vida!”, foi a concludente resposta.
Tudo isto vem a propósito da excelente sessão da Associação Gandaia em que esteve em foco o romance «A Gorda» de Isabela Figueiredo.
Convidada pelo António Fonseca, que é o dedicado organizador das sessões mensais com alguns dos mais interessantes autores atuais de língua portuguesa, a escritora veio falar sobre as razões para se dedicar apaixonadamente à criação literária podendo, decerto, subscrever a explicação dos pigmeus do deserto. Com uma vida riquíssima em histórias para contar - as que viveu, presenciou ou lhe contaram, mormente noutras obras de arte de que se confessou assídua frequentadora - criou um romance, consensualmente reconhecido como talentoso e entusiasmante.
É uma falsa estreia no género porque, embora desconhecido dos potenciais leitores, houve bastante métier antes de aqui chegar. A musicalidade das frases, a construção habilíssima da estrutura narrativa e a densidade dos personagens, que são tudo menos estereótipos, fazem de «A Gorda» um dos grandes romances do ultimo ano.
Autêntico puzzle, que tanto se vai montando por um canto, como logo impele para outro, que depressa se deixa para trás para colocar mais umas peças ao meio, o romance reflete as inquietações com a passagem do tempo e as mudanças suscitadas nas pessoas que se amam ou de que se é amigo, e dos lugares, onde se foi alternadamente feliz ou infeliz. Há amores e desamores, pessoas que chegam e outras que partem, depois de terem sido importantes durante um único verão, os que morrem e os que não chegam a nascer e a casa como personagem de corpo inteiro a servir de tronco de onde partem todas as ramificações para a recriação das várias fases da vida.
Saímos enriquecidos com a leitura do livro, mas o encontro com a escritora permitiu dar-lhe acrescido valor, porque, sem pedantices, criou um interventivo debate primeiro com o editor, o atrás citado Zeferino Coelho, que muito dinamizou a sessão com as explicações sobre os motivos para ter publicado o romance, e depois com o público, onde até houve quem tomasse a palavra, e expressasse o que o livro lhe suscitara, rompendo com o hábito de, por norma, entrar mudo e sair calado.
O que ganhamos com estas iniciativas da Gandaia é incomensurável. Até pode acontecer, que quem nunca se conhecera até aí, entre em diálogo franco à saída e dele emerja, por exemplo a história da razão porque os charutos Monte Cristo assim se chamam. E lá vem Alberto Manguel à colação para nos explicar, por interposto leitor, o hábito de haver quem nas plantações em Cuba se pusesse a ler romances em voz alta para tornar menos entediante o trabalho de ir enrolando as folhas de tabaco. E o entusiasmo dos operários pelo romance de Dumas foi tão avassalador, que decidiram assim lançar a marca do célebre personagem.
São histórias assim que nos ajudam a contribuir, à nossa medida, para que o mundo se componha de mudança tomando sempre novas qualidades.
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