Dos atuais escritores ingleses, Julian Barnes é o meu favorito desde que lhe comecei a descobrir o humor subtil e a erudição bem doseada em «O Papagaio de Flaubert». Desde então tornei-me num leitor interessado de todos os seus livros.
Quando o soube motivado pela biografia de Chostakovich fiquei expectante, porque sabia-a terreno fértil para as diatribes simplistas sobre o estalinismo em que os seus pares ingleses são tão pródigos, nomeadamente Martin Amis.
Barnes sai-se a contento do desafio, mostrando como durante toda a vida o compositor sentiu o medo das consequências da dessincronia com os paradigmas do regime ao qual se foi adaptando na cobardia de se prestar a servir-lhe de títere.
Mas, ao contrário dos que querem olhar para o estalinismo como demonstração da inevitável tendência totalitária da ideologia marxista, Barnes dá-nos um retrato bastante mais rico da sua complexidade. Comprova como nada da prática soviética coincide com os grandes eixos identitários da ideologia comunista: concentrando as decisões num infalível papa e nos seus exacerbados acólitos, essa caricatura de implementação rejeita o princípio fundamental de tudo ser discutido coletivamente e decorrer desse debate de contradições a síntese determinante das políticas a seguir.
Chostakovich nunca foi tido nem achado para saber se era ou não formalista ou se esse ápodo era ou não contrarrevolucionário. A hipótese de ter podido ser “purgado” em 1936, a exemplo de muitos dos seus amigos, terá decorrido do incómodo sentido por Estaline, quando assistiu a uma das récitas da ópera «Lady Macbeth de Mtensk» e ficou num camarote exatamente por baixo da zona do palco onde as percussões vibravam com excessivo entusiasmo.
Terá bastado um editorial do Pravda a manifestar esse desagrado para Chostakovitch sentir a vida em perigo e passar as noites no patamar do andar em que vivia, acompanhado da mala com a roupa imprescindível para o possível confronto com os rigores do goulag, poupando à família o trauma de o verem aprisionado.
Nos acontecimentos desse ano Barnes também mostra como os papistas eram frequentemente convertidos em vítimas da máquina de terror, que tinham ajudado a montar: numa sexta-feira Chostakovitch é convocado à Casa Grande para receber a intimação de voltar segunda-feira com a lista de nomes de amigos e conhecidos supostamente envolvidos numa conspiração para matar Estaline e, passado o fim-de-semana na angústia que podemos imaginar, regressa à sede da polícia política e é mandado embora, porque o instrutor do seu processo já lá não estava e ali não voltaria.
Em contraponto a esse lado mais sombrio o regime faculta ao seu compositor mais talentoso as condições adequadas para prosseguir as criações, mesmo nos períodos em que os jornais o davam como inimigo da revolução: quando as obras não eram executadas em salas de concerto, ele ia utilizando o talento e ganhando o sustento com as bandas sonoras compostas para as produções da Mosfilm.
Barnes aborda, igualmente, a controversa vida afetiva do compositor, ora vivendo os ardores do amor livre com Tanya, quando era jovem, ora aceitando ser um dos vértices de um triângulo que o ligava a Nita, a esposa que partilhava com um desconhecido de quem ela era amante e em cujos braços morrera.
Seja devido ao tema, seja porque a própria morte da esposa afetou o escritor, «O Ruído do Tempo» é menos explicito no humor a que nos habituara. No entanto, se estivermos atentos, ele está lá, quase disfarçado ao mudarmos de linha ou de página. Por isso trata-se de leitura para não ter pressas em concretizá-la: cada frase deve ser lida e sopesada, cada episódio merece reflexão descomplexada sobre os tempos em que Chostakovich viveu.
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