Em 2007, quando os jornalistas foram esperar Doris Lessing para lhe anunciarem ser ela a nova galardoada com o Prémio Nobel, admiraram-se com o desprendimento face à notícia: estava carregada com as compras e parecia bem mais interessada em ir recatadamente arrumá-las do que propriamente em dar relevância a um reconhecimento a que pouca importância dava. À beira dos 88 anos continuava a agir exatamente a contrario do que dela se esperava. E esse sempre foi um traço de carácter revelado, desde os 13 anos, quando decidiu abandonar o colégio de freiras dominicanas em Salisbúria (a atual Harare, capital do Zimbabwe), onde os pais a tinham matriculado, enquanto tratavam de iludir o fracasso do projeto de rentabilização da herdade comprada com o dinheiro por ele ganho enquanto funcionário colonial no Curdistão iraniano.
Doris nascera nessa então colónia britânica em 1919 e chegara à Rodésia com seis anos. Nos vinte e quatro anos viveria ali ou na África do Sul, assistindo com crescente revolta ao modelo de apartheid, inicialmente apenas instituído nos costumes e, depois, na própria lei.
Aos 15 anos decide emancipar-se porque as relações com a mãe eram tempestuosas e ao pai só o ouvia repetir-se nas mesmas histórias sobre a participação na 1ª Grande Guerra que lhe deixara muitos traumas quer psíquicos, quer físicos, já que ficara sem uma das pernas.. Conhecera, aliás, a mulher no hospital londrino onde convalescia e ela era enfermeira.
Liberta da tutela paterna, a futura escritora arranja emprego como ama de crianças numa casa, onde os patrões lhe dão a conhecer livros de política e de sociologia, incentivando-lhe igualmente o prazer pela escrita.
Sempre acelerada nas opções, Doris casa pela primeira vez aos 19 anos com Frank Wisdom, de quem tem dois filhos, e que ficarão com o pai quando ela dele se divorcia passados quatro anos. Não tarda a tentar novo consórcio com Gottfried Lessing, que conhece no círculo de leitores comunistas, que frequenta, e de quem terá outro filho. Tratar-se-á de outro enlace muito breve, porque divorciam-se passados quatro anos, com ela a seguir para Londres e ele para a República Democrática Alemã, vindo a morrer assassinado nos finais dos anos 70, quando era embaixador no Uganda de Idi Amin Dada.
Logo à chegada Doris trata de publicar o seu primeiro romance, A Canção da Relva, que lhe assegurará êxito imediato e o ensejo de passar a viver da escrita. Mantendo-se comunista - ela dirá que foi essa ideologia a abrir-lhe os horizontes nos confins africanos! - integra o Partido Comunista britânico onde militavam outros grandes intelectuais da época, mormente o muito por mim admirado Eric Hobsbawn. Mas tal como muitos deles a desilusão surge com os acontecimentos de 1956 na Hungria, que a levam a dissociar-se da organização. Ela virá a assumir que o seu feitio não se coadunava com casamentos (no sentido estrito e lato), nem com vocação para a maternidade.
Não deixa, porém, de interligar a realidade com a ficção, deixando nesta bem vincada a sua mundividência progressista. As mais de seis dezenas de títulos da sua autoria - alguns deles sob pseudónimo para temporariamente contornar a lista negra em que os editores a haviam incluído! - expressam essa insatisfação pelo mundo em que vivia e o anseio por outro bem mais justo e socialmente equilibrado. Mas muitos dos seus textos prestavam-se a equívocos: nos últimos anos andou a criticar o politicamente correto, mormente das feministas, que a tinham promovido a sua encartada heroína, e que a exasperavam no seu inconsequente radicalismo.
Quando morreu em 2013 poucos contestariam, que ela fora uma das grandes escritoras do século XX.
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