1. Não é que Martin Scorcese se tenha poupado a colaborar com as plataformas, que critica no artigo da Harper’s Magazine de março - Il Maestro: Federico Fellini and the lost magic of cinema - mas ele tem plena razão quando aventa a possibilidade do cinema desaparecer por obra e graça da Netflix, da HBO, da Amazon, da Apple e outras ofertas de filmes para ver em casa. Com uma disponibilidade tão variada de imagens cinematográficas quem ainda arriscará idas às salas de cinema quando elas reabrirem? Os cinéfilos não deixarão de comparecer ás salas em que veem concretizado o ritual de verem filmes projetados em ecrãs onde escapem ao som das pipocas, mas os outros, os que foram adquirindo hábitos caseiros de consumirem imagens que não lhes deem grande trabalho às meninges, será que voltarão?
Scorcese não tem grande fé nesse regresso e acredita num antes e num depois da pandemia. Mas reconhece que, nessas plataformas, os filmes transformaram-se em conteúdos mais ou menos estereotipados, raramente imbuídos da originalidade e beleza dos objetos artísticos. E, de facto, mesmo pensando em sucessos como Roma, O Irlandês, Da 5 Bloods ou, mais recentemente, Mank, alguém sugere que se situarão nas filmografias respetivamente de Alfonso Cuáron, do citado Scorcese, de Spike Lee ou de David Fincher ao mesmo nível de importância dos filmes por eles rodados para cinema? Não nos andamos a iludir com o consumo de filmes em streming, presumindo dar-lhes a mesma importância dos que atribuímos aos que costumamos ver em sala sem que isso faça algum sentido?
Enquanto arte o cinema já passou por muitos desafios. O aparecimento da televisão chegou a justificar muitas previsões quanto ao fim da exibição de filmes em salas de cinema. Depois, com as emissões a cores esses vaticínios repetiram-se. De cada uma dessas vezes o cinema reinventou-se, soube resistir aos desafios, mesmo que perdendo a condição de grande espetáculo popular que chegou a justificar enormes plateias e balcões capazes de albergarem centenas, senão mesmo mais de mil pessoas em cada sessão.
Talvez a solução resida no engenho dos programadores em oferecerem aquilo que os algoritmos com que as plataformas detetam o «gosto» das maiorias não conseguem imaginar. Por exemplo o sucesso recente dos festivais de cinema tipo Indie ou DocLisboa com um tipo de filmes que nada têm a ver com essas maiorias. E continuando a cuidar do cinema como oferta artística em vez de os disponibilizarem nessa lógica de conteúdos estandardizados.
Talvez o cinema possa replicar a célebre frase de Mark Twain, quando houve quem se precipitasse a noticiar-lhe o passamento. Na realidade os receios de Martin Scorcese podem estar profundamente exagerados...
2. Vale a pena, a essa luz, apreciar um dos mais recentes títulos disponibilizados pela Netflix: Tudo pelo Vosso Bem de J. Blakeson até justificava, à partida, o interesse por abordar um escândalo real ocorrido nos Estados Unidos, quando foram desmascarados e condenados em tribunal os cúmplices de uma rede de assistentes sociais, médicos, donos de lares de terceira idade e juízes, que davam idosos endinheirados como senis, colocando-os sob a tutela estatal, para lhes esvaziar as contas bancárias e vender-lhes as propriedades ao mesmo tempo, que vedavam o acesso ao convívio com os familiares.
É desse ponto de partida, que o filme parte, mas o que se segue é ideologicamente repulsivo, porque não se visa aqui denunciar esse esquema fraudulento e demonstrar como ele foi desmascarado e erradicado. Blakeson, que não demonstrara grande talento até aqui, quer demonstrar a sua «verdade»: numa sociedade onde alguns são presas e os outros predadores, mais vale ser como estes por não haver outra forma para ascender socialmente e fugir da pobreza.
A partir daí passa a valer tudo não havendo quem, de entre os personagens, tenha o menor escrúpulo. Nem mesmo a suposta vítima, essa Diane Wiest, que podemos lamentar ver associada a algo assim, mas demonstra que nada esqueceu ao mostrar-se particularmente demoníaca na expressão que endereça a Marla, quando lhe dá conta do erro em que incorreu ao tomá-la como alvo da sua vigarice. Moralmente abjeto, nem sequer se redime, quando acaba com a concretização de um ato de justiça. Porque a mensagem que fica é a de vivermos numa sociedade em que vale tudo pois saibamos ser «habilidosos» e poderemos enriquecer à conta dos que não conseguem evitar a condição de carne para canhão.
Se quisermos um exemplo de conteúdo sem qualquer valia artística aqui fica um eloquente exemplo...
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