quarta-feira, fevereiro 24, 2021

(DL) Quantas Amálias se escondiam dentro de Amália?

 

Há quem goste muito de fado. Eu nem por isso. E, no entanto, nunca mais esqueci aquela tarde de domingo em que o calor estival era tanto, que decidira ficar no ar condicionado do hotel de Pireu. Vivia o ano de 1989 e estava comprometido com a requalificação de um paquete, que perduraria ainda mais uns meses num dos estaleiros de Perama.

Enfastiado lia um policial e tinha a rádio sintonizada num posto grego, que ia dando música agradável. Às tantas o locutor disse um nome, que julguei ter percebido mal, mas, ainda confundido, logo confirmei ser aquele que me parecera: Amália Rodrigues.

Na profunda solidão de uma ausência de casa, que não sabia por quanto mais tempo se estenderia, aumentando-me o peso das saudades, aquela canção, O Barco Negro, mexeu profundamente comigo e quase me deu aquele desejo de sofrer enunciado por Cesário Verde no seu Sentimento dum Ocidental.

Não soubesse que Miguel Carvalho é o jornalista da Visão, que tão incisivo tem sido na denúncia da ignóbil criatura e o seu livro sobre a fadista passar-me-ia completamente ao lado. Mas Amália - Ditadura e Revolução perscruta-lhe esse lado menos conhecido, a de alguém que, segundo Saramago, abria os cordões à bolsa para ajudar as famílias dos presos políticos, mesmo forçando os intermediários a nem sequer lhe darem uma palavra sobre para quem o dinheiro se destinava. Ou a falsa ingénua, que cantava o Fado do Abandono e fingia não se aperceber do que diziam os seus versos, mesmo que ele começasse a ser mais conhecido como o Fado de Peniche.

O livro de Miguel Carvalho acaba por adensar o grande mistério sobre quem terá sido Amália ou quantas Amálias ela terá albergado dentro de si. Porque não evitando deixar-se instrumentalizar pela ditadura, que a enaltecia como uma das suas simbólicas representantes, ela revelava-se outra completamente diferente, quando as luzes dos palcos se apagavam e, no recato da sua casa, recebia quem contra o regime militava. A começar por esse determinante Alan Oulman, que faria com que as suas canções ganhassem uma dimensão distinta das que se espartilhavam da tradição donde ele as soubera emancipar. 

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