Há quem goste muito de fado. Eu nem por isso. E, no entanto, nunca mais esqueci aquela tarde de domingo em que o calor estival era tanto, que decidira ficar no ar condicionado do hotel de Pireu. Vivia o ano de 1989 e estava comprometido com a requalificação de um paquete, que perduraria ainda mais uns meses num dos estaleiros de Perama.
Enfastiado lia um policial e tinha a rádio sintonizada num posto grego, que ia dando música agradável. Às tantas o locutor disse um nome, que julguei ter percebido mal, mas, ainda confundido, logo confirmei ser aquele que me parecera: Amália Rodrigues.
Na profunda solidão de uma ausência de casa, que não sabia por quanto mais tempo se estenderia, aumentando-me o peso das saudades, aquela canção, O Barco Negro, mexeu profundamente comigo e quase me deu aquele desejo de sofrer enunciado por Cesário Verde no seu Sentimento dum Ocidental.
Não soubesse que Miguel Carvalho é o jornalista da Visão, que tão incisivo tem sido na denúncia da ignóbil criatura e o seu livro sobre a fadista passar-me-ia completamente ao lado. Mas Amália - Ditadura e Revolução perscruta-lhe esse lado menos conhecido, a de alguém que, segundo Saramago, abria os cordões à bolsa para ajudar as famílias dos presos políticos, mesmo forçando os intermediários a nem sequer lhe darem uma palavra sobre para quem o dinheiro se destinava. Ou a falsa ingénua, que cantava o Fado do Abandono e fingia não se aperceber do que diziam os seus versos, mesmo que ele começasse a ser mais conhecido como o Fado de Peniche.
O livro de Miguel Carvalho acaba por adensar o grande mistério sobre quem terá sido Amália ou quantas Amálias ela terá albergado dentro de si. Porque não evitando deixar-se instrumentalizar pela ditadura, que a enaltecia como uma das suas simbólicas representantes, ela revelava-se outra completamente diferente, quando as luzes dos palcos se apagavam e, no recato da sua casa, recebia quem contra o regime militava. A começar por esse determinante Alan Oulman, que faria com que as suas canções ganhassem uma dimensão distinta das que se espartilhavam da tradição donde ele as soubera emancipar.
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