Quando Georges Simenon se caracterizava reconhecia em si duas personalidades contraditórias, mas também complementares: a do homem da Europa do norte, cioso da ordem e da disciplina, mas também o do sul, deleitado a usufruir os prazeres de dormir numa rede ao ar livre.
Em 1926 o então jornalista Simenon foi para a Côte d’Azur, que nada tinha a ver com o cosmopolitismo posterior, porque ainda oferecia muitas paisagens em estado selvagem. E não faltavam as desigualdades sociais, que ecoariam de forma mais ou menos explicita nos seus romances. Maigret ainda não se concretizara na mente, enquanto seu incontornável alter ego, mas a verve criativa traduzir-se-ia em quarenta romances até tal acontecer em 1931. A simpatia para com os rebeldes e os desvalidos são neles uma constante.
Fascina-o a quase ilha de Giens ligada ao continente por duas línguas de areia e a constituir abrigo de muitas espécies. O azul do céu e do Mediterrâneo fascina-o estimulando-lhe a propensão para as descrições, que sempre abundam nos seus romances. Há quem o veja nessa altura como uma espécie de pintor impressionista que, sem pincéis nem tela à mão, escolhesse as palavras para produzir as mesmas criações impressionistas.
Ele também gosta de percorrer a parte antiga de Hyères imaginando naqueles com quem se cruza os potenciais personagens dos seus livros. Mesmo nos que só surgirão muitos anos depois como é o caso do antiquário de Toulon, que se sente usurpador de um papel social, que não é o seu, depois de ter enriquecido como bem sucedido ladrão de joias (Le Passage de la ligne, 1958). Ou no jovem protagonista de Le Confessional (1966), dividido entre a mãe alcoólica e adúltera e um pai deprimido, a encontrar consolo nos frequentes banhos no Mediterrâneo.
Mas o seu maior fascínio surgirá da descoberta da ilha de Porquerolles, que conheceu quando tinha ainda apenas uma centena de habitantes. Quase duas décadas depois, em 1949, para aí fará transitar Maigret num romance - Mon ami Maigret - onde muito do que percecionara nesse grato passado lhe surge vertido para o papel.
Se muitos foram as geografias onde Simenon situou os seus personagens - Liège, Paris, La Rochelle - a Côte d’Azur nunca deixou de constituir uma das que lhe surgiram recorrentemente como forma de resgatar as emoções aí colhidas, quando ainda só tinha 23 anos.
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