segunda-feira, fevereiro 15, 2021

(DL) O poder da imaginação

 

Pobres que seríamos sem a imaginação! É o que poderemos reter em comum de dois livros tão diferentes como Genesis - A História do Universo em sete dias de Guido Tonelli e A Sport and a Pastime de James Salter. No primeiro, o físico da Universidade de Pádua, também associado à descoberta do bosão de Higgs, assume a importância da fantasia para qualquer cientista apostado em compreender e explicar a origem do universo. Até por apenas conhecermos 5% do que vemos no mais avançado dos telescópios para vislumbrar o passado de tantas e tão exuberantes galáxias. Sobre a desconhecida matéria escura, poderemos congeminar muitas teorias de acordo com o saber atual, mas nada concluindo, porque o incontornável método científico não dispõe do necessário para desembocar em algo de definitivo.

Não deixa de ser curiosa a opção de Tonelli ao estruturar o seu livro: ateu assumido, reteve da Bíblia a proposta de um Génesis cumprido em sete dias e assim, igualmente, dividirá a abordagem de como, a partir do Big Bang, e das partículas elementares por ele libertadas, se chegou ao universo conhecido. E onde temos a sorte de, há milhões de anos, termos alcançado um equilíbrio, que nos ilude quanto à estabilidade do que vemos e sentimos. Mas sabendo que, em distante passado, e agora mesmo, muito para além do nosso sistema planetário, há a fragilidade de cataclismos galácticos, para os quais só podemos recorrer à inevitável imaginação.

Ao mesmo artifício recorre o anónimo narrador do terceiro romance de James Salter, que se comporta como o voyeur apostado em olhar para a relação entre um jovem compatriota e uma rapariga de Autun, a pequena vila da Borgonha onde quase tudo se passa.

Escrito em 1967, em plena revolução sexual, não faltam descrições explicitas das relações carnais de Philip Dean com Anne Marie. Mas, desde início, somos avisados de que muito de quanto ali se descreve decorre da fantasia do narrador: “Eu não estou a dizer a verdade sobre Dean. (...) Eu estou a criá-lo a partir das minhas elucubrações e o leitor deve ter isso sempre presente.”

Avisados que ficamos, logo tenderemos a olhar para o romance como aquilo que ele verdadeiramente é: a proposta de como criar uma narrativa, servindo-se para tal de uma história convencional - a relação amorosa desigual entre um personagem masculino seguro de si no seu solipsismo arrogante e uma rapariga de dezoito anos já com outras relações amorosas anteriores, mas ainda assim capaz de render-se à ilusão romântica de viver algo de definitivo. E há o estilo identitário de Salter, reconhecido como um dos grandes estilistas do século XX, capaz de, por exemplo, descrever o espaço físico onde se movem os personagens com esta eloquente depuração: “O céu pálido. O céu vazio da manhã, limpo e puro. As ruas profundas e divididas. Os pátios estreitos, o ligeiro odor a podridão, cascas de laranjas espalhadas pelos cantos.”

Ler Salter, para além dessa imaginação com que o narrador concebe a forma como Philip e Anne-Marie evoluem para o desiderato trágico, é também atender a cada frase, lida com a disponibilidade de as reconhecer buriladas até quase à perfeição.

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