quarta-feira, fevereiro 17, 2021

(DL) Valter Hugo Mãe a trazer-nos a infância de volta

 

Gostava de ter tido uma infância rica em aventuras como Tom Sawyer. Ou mágica e romântica como a do Grande Meaulnes. Mas, convenhamos que a minha foi tão banal quanto a podia ser a de uma família pequeno-burguesa a viver nos arrabaldes da capital em meados dos anos sessenta. Que afinal não diferiu substancialmente de quem viveu dezena e meia de anos depois entre Paços de Ferreira e as Caxinas, depois de vir de Luanda ainda bebé, como aconteceu com Valter Hugo Mãe. Por isso mesmo muito me identifiquei com o exercício autobiográfico por ele feito no seu mais recente romance: Contra mim. Com a diferença dele conseguir verter literariamente para o texto as mesmas descobertas e emoções com uma qualidade de que me reconheço - hélas! - incapaz.

Terei sido porventura menos toinha até por, muito cedo, me ter juntado aos gangs de pequenos facínoras, que tropeliavam pela Caparica, mas o espanto era o mesmo perante a descoberta das coisas dos crescidos, mormente essa sexualidade, transformada em tabu até a puberdade trazer revelações inesperadas nas conversas entre amigos, mais à base de suposições do que de informações substantivas.

Surpreendente, porém, a forma como um rapaz pobre, sem acesso a livros, foi à descoberta das palavras, pressentindo-lhes quanto eram capazes de se adornarem de ritmos e rimas, que uma professora identificaria como poesia. Fica assim justificada a diferença de talentos: algo de inexplicável aconteceu ao narrador do livro, quando encontrou as potencialidades relacionadas com a conjugação de palavras numa mesma frase, num mesmo verso. Pela mesma idade eu andava mais interessado nos conteúdos do que nas formas. O que equivale a dizer que me divertia com as vicissitudes por que passavam os heróis de Mark Twain ou as possibilidades amorosas do protagonista do romance de Alain-Fournier.

A leitura de Contra mim foi um duplo deleite: porque reavivei memórias de um passado quase sempre remetido para os mais profundos meandros do cérebro e pude reencontrar a prosa talentosa do autor. É, pois, uma boa sugestão de leitura para estes dias de confinamento em que temos tempo para a leitura atenta, sem distrações e com tempo para sobre ela deixar a mente divagar...

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