quinta-feira, fevereiro 11, 2021

(DIM) Malcolm & Marie, Sam Levinson, 2021

 

Muitas e boas razões justificam a fruição deste filme estreado na Netflix no início deste mês. Em primeiro lugar o de integrar de pleno direito a lista de filmes candidatos a pertencerem à lista de um novo subgénero criado por força das presentes circunstâncias. Quando um dia olharmos para trás e pensarmos que tipo de obras resultaram destes longos meses de confinamento, Malcolm & Marie será, porventura, um dos que logo nos virão à mente. Referir-nos-emos então a uma das mais comuns características desse subgénero: filmes realizados em espaços fechados, com poucos atores e pequenas equipas técnicas, mas necessariamente potenciados pelos excelentes diálogos e os não menos superlativos desempenhos.

O filme de Sam Levinson cinge-se à sala, ao quarto, à varanda e ao quintal das traseiras da casa. Um huis clos ideal para compor aquilo que os franceses em tempos crismaram de jeu de massacre. Porque disso se trata: no começo do filme há um casal, que chega a casa, com ele a extroverter uma imensa euforia. Acabara de estrear um filme, que suscitara o rendido aplauso de quem o vira. Até da crítica do Los Angeles Times, em tempos idos bastante menos pródiga em elogios a obra anterior.

É quase uma da madrugada e a comemoração pressentida depressa se vê comprometida com as expressões de enfado de Marie. E inicia-se um esquema narrativo com algo de teatral, mediante a divisão em três atos correspondentes a outros tantos clímaces em crescendo, separados por momentâneos apaziguamentos, depois concluídos num epílogo em aberto.

Alguém sugeriu semelhanças com Gata em Telhado de Zinco Quente mas a hipótese soou-me a disparate. A haver aproximações desse tipo mais vale recordar os títulos de Ingmar Bergman em que personagens aparentemente empáticos durante o dia chegavam à noite e libertavam todos os fantasmas interiores, depressa convertidos em dolorosos exorcismos, e só resolvidos ao nascer da manhã. Sonata de Outono é um exemplo, que me vem imediatamente à cabeça, mas Cenas da Vida Conjugal também não andaria longe como reminiscência possível.

A semelhança com uma montanha russa também poderá servir como metáfora: Malcolm e Marie começam a falar um do outro numa cada vez mais violenta e visceral troca de acusações, que ora sobem ao ponto mais alto donde tememos inevitável a queda fatal no abismo, ora descem a alturas menos perigosas e deixam pressentir a mútua vontade de não forçarem novamente a iminente rutura.

O que está em causa é o desagrado de Marie por, no final da apresentação do filme, Malcolm ter-se multiplicado em agradecimentos e tê-la esquecido. Ora Imani, a personagem nele exaustivamente explorada, é uma réplica de quem ela fora, quando se enleara nos labirintos da toxocodependência e só se livrara, quando ele personificara um Jasão capaz de a resgatar e dar-lhe as condições para a definitiva salvação. A acusação que ela lhe faz ganha todo o sentido: se ele partilhasse com ela os méritos da história teria de dividir uma glória, que desejaria guardar só para si. Daí que nem sequer considerara a hipótese de ser ela a protagonizar o filme em vez dessa Taylor a quem concedera exagerada importância.

No meio da discussão encontramos, igualmente, uma componente metaficcional, quando discutem o papel da crítica cinematográfica e a forma como olha estereotipadamente para os filmes de acordo com a cor da pele de quem os realiza. Para a tal critica do LA Times a tentação era comparar Malcolm com Spike Lee ou Barry Jenkins espantando-se quando ele lhe sugerira a analogia com William Wyler. Em questão, igualmente, a possibilidade de um filme assinado por um negro ser visto como político, mesmo tendo ele pretendido criá-lo apenas como entretenimento.

A força do filme está nesses diálogos, que possibilitam a John David Washington e a Zandaya duas magníficas interpretações. E sem que tudo aquilo pareça excessivamente teatral. Pelo contrário a câmara move-se com uma agilidade e uma sábia escolha dos enquadramentos, que resulta inegável a condição de objeto cinematográfico.

A opção pelo preto e branco é outra sábia escolha do realizador, porque a cor dilui o paroxismo das emoções, que aqui se extravasam numa ambiência propícia a só nelas nos concentrarmos. Curioso, enfim, o plano com que o filme conclui e é o mesmo do quadro ou fotografia pendurada no quarto do casal. Como se esse olhar de ambos, de costas para nós, e focalizados no horizonte para lá da colina a que subiram, lhes dê a resposta para que futuro lhes resta e nós não lhes poderemos prognosticar.

Sem arriscar inclui-lo para já na lista dos melhores filmes do ano - temos ainda tantos meses de descobertas pela frente! - arrisco a forte probabilidade o ver nela constar quando fizermos o balanço cinematográfico deste ano, que almejamos terminar como o da nossa merecida alforria.


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