sábado, fevereiro 13, 2021

(DL) Natureza Morta com Brida de Zbigniew Herbert

 

Não é apenas pelas afinidades familiares com os Países Baixos, que li de uma assentada o primeiro dos dezassete textos de Zbigniew Herbert sobre as suas viagens por todo um território, que me é bastante fácil de imaginar em função das experiências aí vividas.

Em geral gosto bastante de livros de viagens. Não os que disso fazem vida e optam por uma escrita estereotipada, que nada acrescenta ao já conhecido. Prefiro os relatos de escritores - neste caso de um conceituado poeta polaco - que procura adequar-se ao conceito de viajante ideal: o que é capaz de estabelecer um contacto com a natureza, as pessoas, a sua história e arte. Desta última aborda os imensos pintores, que cumpriam esforçado labor no período áureo do século XVII, quando as telas eram a única forma de irem assegurando a sobrevivência dos seus e o pagamento das dívidas. Vermeer e Rembrandt são exemplos de quem muito trabalhou, mas mal conseguia sair da cepa torta. E não só dos nomes mais conhecidos é feita essa viagem de Herbert, porque muitos outros são invocados e o título do livro até tem por referência o único quadro conhecido de um pintor enigmático de cuja biografia nada sabemos.

Há nestas páginas uma erudição admirável, que não exclui a fina ironia perante o que surpreende e impressiona. Estou convicto de que, desta leitura acabarei por olhar as próximas deslocações a Haia ou Amesterdão com outra intensidade, porventura procurando a resposta para a perplexidade de, no céu neerlandês não encontramos identificação com o que testemunharam os artistas desse glorioso passado. Ou será apenas uma ilusória impressão?

Excerto:

Assim que atravessei a fronteira belgo-holandesa, subitamente, sem motivo nem reflexão, decidi alterar o plano inicial e, em vez de seguir o tradicional caminho para norte, escolhi o caminho para Ocidente, ou seja, em direcção ao mar, com a finalidade de conhecer, pelo menos superficialmente, a província da Zelândia, da qual nada sabia, a não ser que ali não iria encontrar arrebatamentos artísticos de maior.

As minhas viagens anteriores pela Holanda1 tinham-se realizado em movimentos pendulares, ao longo do litoral, isto é, figurativamente falando, desde O Filho Pródigo de Bosch em Roterdão até A Ronda da Noite de Rembrandt no Museu Real de Amsterdão; por conseguinte, era o itinerário típico de uma pessoa que devora pinturas, livros e monumentos, deixando o resto para aqueles que, à semelhança da Marta bíblica, só se preocupam com as coisas mundanas.

Simultaneamente, eu estava ainda ciente da minha limitação, porquanto é sabido que o viajante ideal é aquele que é capaz de estabelecer contacto com a natureza, as pessoas, a sua história e, também, com a arte, e que somente o conhecimento destes três elementos, que mutuamente se interceptam, constitui o início do saber acerca de um dado país. Daquela vez, dei-me ao luxo de me afastar das coisas «essenciais e importantes» para comparar os monumentos, os livros e os quadros com o verdadeiro céu, o verdadeiro mar e a verdadeira terra

Seguimos, portanto, por uma vasta planície, uma estepe civilizada, um caminho aplanado como a pista de aterragem de um aeroporto, entre prados infinitos, semelhantes ao paraíso verde e plano do Retábulo de Gante dos irmãos van Eyck. E, embora nada de extraordinário se passasse e eu estivesse bem preparado, porque lera tudo e mais alguma coisa, nos meus receptores sensoriais ocorriam alterações difíceis de descrever, as quais, apesar disso, eram muito concretas. Os meus olhos citadinos, desabituados de contemplar vastas paisagens, examinavam inseguros e tímidos o horizonte longínquo, como se estivessem a aprender a voar sobre uma superfície inabarcável, mais semelhante à imensa bacia de um rio do que ao terreno de um continente, que, na minha imaginação, sempre se associara a um aglomerado de colinas, montanhas e cidades que se erguem em camadas, rompendo a linha do horizonte. Por essa razão, durante as minhas andanças pela Grécia e Itália, estivera sempre em estado de constante alerta e de contínua necessidade de conquistar uma perspetiva mais alargada e aérea, uma vista «de pássaro», que me permitisse abarcar o todo ou, pelo menos, uma parte considerável do todo. Subia ao declive íngreme e pontilhado de mármores de Delfos para ver o lugar do duelo mortal entre Apolo e a besta. Tentava conquistar o Olimpo na ilusória esperança de conseguir avistar todo o vale tessálico de mar a mar (mas justamente naquele dia, para minha infelicidade, os deuses encontravam-se numa reunião importante nas nuvens e, por isso, acabei por não ver nada). Também polia pacientemente as escadas sinuosas das torres das câmaras municipais e das igrejas italianas, mas os meus esforços eram recompensados apenas pelo que se pode designar «um torso da paisagem», maravilhoso, fragmentos  maravilhosos, obviamente, que depois perdiam a cor, mas que eu guardava na memória como postais, aquelas imagens traiçoeiras com cores falsas e luz falsa, imunes a qualquer emoção. Ali, na Holanda, tinha a sensação de que bastaria subir a uma colina qualquer para abarcar com o olhar todo o país — todos os seus rios, prados, canais e cidades vermelhas —, como se fosse um grande mapa que se pode aproximar e afastar dos olhos. E não se tratava de modo algum de um sentimento acessível apenas aos estetas, isto é, puramente estético, mas de algo semelhante a uma partícula da omnipotência reservada a seres superiores — o abarcar de espaços inalcançados, com toda a sua riqueza, pormenores, ervas, pessoas, águas, árvores e casas, tudo aquilo que só o olhar de Deus abrange —, a imensidão do mundo e o coração das coisas. E, assim, seguíamos pela planície, que não oferecia qualquer resistência, como se de repente as leis da gravidade tivessem sido suspensas, avançávamos pela terra plana, acompanhando o movimento de um globo terrestre. Éramos invadidos por intensas impressões sensoriais, a abençoada monotonia, a sonolência dos olhos, o entorpecimento da audição, a retirada do tacto, já que, em redor, nada se passava que pudesse suscitar o frenesim da exaltação. Somente mais tarde, bastante mais tarde, haveríamos de descobrir a riqueza fascinante daquela enorme planície. 

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