terça-feira, fevereiro 09, 2021

(DL) Carpas e memórias infantis

 

1. Começamos por encontrar Louise Baltard a palmilhar Paris entre o Palais–Royal e um prédio defronte do Ritz para ir ao encontro do único compromisso, que não conseguira procrastinar nesse dia: com Stan, seu único cliente, e por isso patrão, enquanto designer esfalfada para ganhar o sustento de cada dia. Caprichoso como sempre, e sem o cheque que lhe deve para pagar os trabalhos mais recentes, ele quer-lhe transmitir outro absurdo projeto: a montagem de uma exposição de arte contemporânea num jacto privado em viagens entre Paris e Nova Iorque e onde tenham como potenciais clientes alguns endinheirados sauditas.

A excentricidade da ideia não se fica por aqui porque, aos 50 anos e com este primeiro romance, Anthony van den Bossche vai-nos cooptar para o mui singular universo das koï, essas carpas japonesas vistas em tantos filmes provenientes da terra do sol nascente e criadas de acordo com ancestrais ensinamentos.

O que Bossche propõe é uma viagem de aventuras, que tem Louise como protagonista, mas à qual se associam o irmão e os amigos do pai, recentemente falecido, numa sociedade secreta motivada para salvar e reunir as carpas por ele lançadas em várias geografias da cidade. Esse pequeno grupo constrói e descobre um mapa subterrâneo, desconhecido de quem habita o mesmo espaço citadino, e para cuja preservação não enjeita a necessidade de alterar os cursos dos rios ou da História.

Porque Bossche muito escreveu - no jornalismo cultural - antes de desembocar neste romance, ter-se-á livrado de muitos dos pecados dos que se arriscam numa primeira obra. Bem escrito, com uma desenvoltura narrativa coerente e consistente, Grand Platinum desmente a peregrina tese de já se terem contado todas as histórias possíveis, só sobrando espaço para variações mais ou menos imaginativas das mesmas. Só lhe tendo ainda lido as primeiras páginas, convenço-me de que este caso vai além dessa generalização algo abusiva.

2. O fascínio por outra cidade - Marselha - é uma das ilações a retirar de O Livro da Minha Mãe que, escrito em 1954, só teve tradução portuguesa numa edição da Contexto há cerca de duas décadas. Primeira parte de uma trilogia dedicada à sua autobiografia, Albert Cohen lembra aquele ano de 1900 quando aí desembarcou com a família para melhor escapar aos progroms na ilha de Corfou, onde nascera.

Instalados no bairro Le Panier, o mais histórico da cidade, os recém-exilados contavam encontrar um ambiente mais favorável para viverem dentro da tranquilidade possível. Os elétricos, que pareciam deslocar-se sozinhos, fascinaram o miúdo, que se apressou a considerar a França o melhor dos mundos possíveis, terra da liberdade e da alegria. Por isso criou no quarto uma espécie de altar onde agregou objetos icónicos dessa terra, que passou a sentir como sua, decorando e cantando amiúde a Marselhesa. Mas essa não era a realidade que se vivia portas adentro: carinhosa e devotada ao filho, Louise era vítima da agressividade do marido a quem ajudava no negócio por ele ali aberto. Daí que, em vez de pai, Albert sempre se lhe refira como o «marido da mãe». O livro surgiria como uma espécie de vingança tardia e edipiana contra esse detestado progenitor, e planeado a partir do momento em que, exilado em Londres em 1943, recebeu a notícia da morte de Louise na casa que sempre fora para ela o circunscrito espaço do seu reino judaico, da sua pobre pátria.

Se o miúdo de cinco anos ainda tardara em identificar a crueldade do antissemitismo, também existente na pátria adotiva, um episódio iria abalá-lo: quando tinha dez anos um vendedor-ambulante insultou-o na rua, dizendo-lhe não ter qualquer direito em ali viver e por isso melhor fosse que desandasse para donde viera. A humilhação, relatada na segunda parte da autobiografia (O vous, frères humains), determinou todo o seu futuro.


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