quarta-feira, fevereiro 17, 2021

(DIM) A Infância de Ivan, Andrei Tarkovski, 1962

 

Foi o primeiro filme de Andrei Tarkovski e logo nos sugestiona a intenção de ter  ligado a cena final do seu derradeiro filme com a primeira, que neste podemos ver: em ambas  há um travelling ascendente com uma criança e uma árvore  a personificarem a aspiração à inocência num mundo que a tende a espezinhar. Pelo meio, entre este A Infância de Ivan e o seminal O Sacrifício passaram vinte e quatro anos e sete filmes de permeio. E como não os associar a essoutra obra maior, Stalker, também enunciadora de um ideal transcendente e associal perante a sociedade dos homens?

Olhando para os protagonistas dos filmes de Tarkovski encontramos a insistência em inocentes a sentirem-se fragilizados perante os constrangimentos das circunstâncias.

O filme começa nas margens do Volga, quando os alemães mantêm ocupada vasta área da União Soviética.  Há uma criança com uns doze anos, Ivan, a sonhar com as alegrias do passado, quando andava por entre os animais da quinta onde vivia - a teia de aranha, uma cabra e borboletas e a resposta à mãe com o canto do cuco - até ser despertado pelo som de tiros. Saído do moinho, onde se acoitara, depara com o cenário de catástrofe à sua volta: a estepe pejada de cadáveres, um pântano sentido como uma armadilha.

Esse sonho ligar-se-á com o do final do filme, quando o vemos `a brincar às escondidas com outros miúdos numa praia báltica e, depois, a correr com uma miúda da mesma idade com quem vive a ilusão dos amores infantis. Apesar do quotidiano ser o de um jovem espião infiltrado em território inimigo dando ao Exército Vermelho as informações necessárias para orientar as suas movimentações ele não deixa de ser uma criança a quem a infância é negada. E por isso traumatizada por más recordações, que fazem sentir-se aterrorizado pela possibilidade de revelar as assombrações aos outros, quando junto deles dorme.

Há nele um desejo enorme de ser amado, de encontrar substitutos para os que desapareceram da sua vida e o deixaram órfão (eloquente a cena da morte da mãe, que o deixa indefeso no fundo de um poço!). Daí o apego ao tenente-coronel, seu pai de substituição, para quem não quer deixar de trabalhar, mesmo quando ele quer obriga-lo a ir para a retaguarda para se matricular numa escola para jovens militares. Ivan teima em prosseguir com as suas missões clandestinas tanto mais que elas lhes podem garantir a vingança contra quem o deixou sozinho no mundo em guerra.

Reconhecemos nele uma ambivalência, que suscita interrogações: será o exemplo paradigmático de uma pureza corrompida, de uma infância cerceada? Ou, pelo contrário, já nele se apagou a criança para prevalecer o lado psicótico?

O tenente que nele não reconhecera o combatente, quando lhe surgira no acampamento e depois vê a sua ficha na Berlim em ruínas como guerrilheiro condenado à morte pelos nazis, dar-nos-á a resposta: na sua curta existência Ivan não teve oportunidade de nos elucidar quanto à prevalência da sua identidade: a de criança ou a de jovem soldado.

Num filme, que Jean Paul Sartre muito amou, e baseado numa novela de Bogomolov, Andrei Tarkovski cedo demonstrou o tipo de linguagem cinematográfica, que seria doravante a sua em todos os filmes que viria a assinar até à morte em 1986: amplos movimentos de câmara, a mistura de tempos com as recordações a embrincarem-se nos acontecimentos, a sensação de tempo a escoar-se através de uma montagem sequencial, as citações culturais, as imagens de arquivo, o interesse pelos grandes planos dos rostos.

A seu modo é um filme ilustrativo da época de Krouchtchev, quando a desestalinização se acelerava e a nova nomenklatura ainda não se cristalizara na defesa intransigente das suas certezas e interesses. O maniqueísmo dos filmes soviéticos sobre a Segunda Guerra esbate-se perante a voluntária invisibilidade dos inimigos, cuja presença é, porém, constante. Não há receio em mostrar a politicamente incorreta utilização de crianças nos objetivos militares e até o assédio sexual se denuncia através da personagem Macha, revelando quão ambíguo era o heroísmo dos militares do Exército Vermelho, ao mesmo tempo bravos no combate, mas capazes de, sexualmente, se comportarem como predadores. O que, convenhamos, muitas mulheres alemãs sentiram bem na pele, quando eles ocuparam as regiões onde viviam.

Não é uma obra maior no conjunto da filmografia do realizador, mas também está distante dos muitos pecados, que vemos explícitos em tantas primeiras obras. Aqui, Tarkovski demonstra ter sabido contorná-los...

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