sexta-feira, agosto 02, 2019

(VOL) A imortalidade, o ciúme e o que é, ou não, Arte?


1. Foi curiosa a tentação dos românticos pelo mito de Fausto. Em 1829 Goethe deu-lhe expressão literária e, trinta anos depois, Gounod, fez dele uma das mais importantes óperas do século XIX. Porquê essa obsessão pela imortalidade, que Mary Shelley já explorara numa abordagem fantástica? Talvez a angústia de um tempo, que se escapava, sobretudo quando abreviado pelas muitas doenças incuráveis nessa época. Hoje em dia, com a esperança de vida a prolongar-se muito para além do que significa uma vida usufruída com qualidade, faz sentido essa ânsia de um pacto pelo qual se lhe inibam os constrangimentos biológicos?
Pessoalmente bem me poderia vir o Demo bater à porta, que manteria a determinação com que ponho a milhas as Testemunhas de Jeová ou os mórmons, que se arriscam a incomodar-me. Tendo a fatal ampulheta bem mais preenchida na parte inferior do que na que alberga o fluxo remanescente de futuro que me cabe não veria qualquer vantagem em virá-la ao contrário e pô-la a reiniciar - quase do zero! - a contagem decrescente para a morte.
2. Outra ópera, que por estes dias me tem passado diante dos olhos, é a «Tosca» de Puccini. Nunca retivera a informação de se ter baseado numa peça encomendada por Sarah Bernhardt para uma das suas carismáticas interpretações teatrais. No final do século XIX a grande atriz não encontrava reportório à medida de grandes papéis dramáticos, que lhe dessem oportunidade para revelar o afamado talento e cuidava de encomendá-los a dramaturgos caídos nas suas graças.
À distância de quase cento e vinte anos a história roça o ridículo tão obsessivamente ciumenta é caracterizada a protagonista e, por isso mesmo, responsável pela morte de um revolucionário e do amante, que cuidava de o ajudar a esconder-se. Mas quem quer saber da inverosimilhança da intriga, quando a música é brilhante e sobram duas grandes árias para facilmente a recordarmos?
3. A história de Han van Meegeren obriga-nos a repensar o que valoriza uma obra de arte. Se na ópera de Puccini ela era incontestável, mesmo se nos obrigássemos a abstrair do conteúdo do libreto, nos quadros pintados pelo falsário holandês, que convenceram vários colecionadores a adquiri-los como se fossem verdadeiros Vermeer, pôs-se uma questão pertinente: porque é que num dia valiam milhões por supostamente corresponderem a um período da vida do pintor de que se haviam perdido todas as obras e coincidindo com a sua provável estadia em Itália, enquanto no seguinte, esclarecida a identidade de quem, efetivamente, os pintara, nada passavam a valer? Mesmo que nada neles tenha mudado quanto ao seu aspeto...
O que definimos como arte? O que esteticamente nela nos impressiona ou o que é validado pelo mercado e só é reconhecido se corresponder aos cânones aprovados pelos críticos, historiadores ou curadores?
Na realidade não faltou quem achasse as obras de Meegeren mais interessantes do que as do próprio Vermeer a quem supostamente começara por ser atribuída a sua autoria...

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