quinta-feira, agosto 01, 2019

(DIM) Uma zanga mítica - Truffaut e Godard


Em 1974 François Truffaut ganhou o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro com »A Noite Americana». Meses antes Jean Luc Godard arrasara-o, acusando-o de mentiroso! Este não se coibiu de lhe dar violenta resposta reconhecendo que o filme não correspondia nem à ideia de cinema, nem à ideia de vida, que Godard defendia.
Ficou consumada a rutura entre os dois mais importantes cineastas da Nouvelle Vague apesar de uma cumplicidade, que se forjara em 1947, quando Jean Luc tinha 17 anos e François 15. Amantes de cinema partilhavam sessões contínuas nas salas do Quartier Latin, privilegiando filmes de autores do cinema norte-americano (Hawks, Hitchcock) ou de grandes mestres europeus (Renoir, Rossellini).
Godard nascera numa família da alta sociedade protestante franco-suíça, que vivia nas margens do Lago Leman. Ao invés, Truffaut era parisiense, filho de pai desconhecido e educado pela avó.
O primeiro a entrar como crítico nos «Cahiers du Cinema» foi o suíço, mas o amigo juntou-se-lhe, no ano seguinte aí conhecendo Rohmer, Rivette e Chabrol. Os textos irreverentes dessa geração de jovens cinéfilos muito contribuem para o crescente sucesso da revista.
Em 1954 Truffaut mostrou-se particularmente agressivo para com um certo tipo de cinema, que designou como «qualidade francesa» e fundamentado no primado dos argumentistas, nas rodagens em estúdio e na aparência académica. Assumindo-se como estratega apostado numa espécie de combate permanente contra uma forma envelhecida de cinema, o jovem crítico apostava na sua definitiva superação.
Godard não tinha esse tipo de comportamento: criticava, mas com bem maior discreção. Daí que os textos lhe valham menor notoriedade.
Apoiado pelo sogro, dono da empresa Films de la Carrosse, Truffaut é o primeiro a passar à realização com o quase autobiográfico «Quatrocentos Golpes» (1959), que marca o ponto de partida da Nouvelle Vague. O filme foi aclamado no Festival de Cannes com o Prémio de Melhor Realizador. Aos 28 anos ele via-se capaz de ajudar os amigos dos «Cahiers» a imitarem-no na passagem das páginas da revista para os ecrãs de cinema. Godard foi o primeiro a ser apoiado, rodando «O Acossado» em 1960, estando Truffaut creditado como argumentista. Nele o realizador dá-se ao prazer de fazer tudo quanto até então era considerado tabu: rodar um grandes planos com uma grande angular, fazer um travelling com a câmara na mão a acompanhar os personagens. Queria demonstrar que, em cinema, tudo era permitido.
De súbito formou-se um consenso público e da crítica em torno dos dois realizadores, que constituíam um novo paradigma de liberdade na forma como se expressavam cinematograficamente.
Durante toda a década de 60, de filme em filme, Truffaut e Godard consolidam o prestígio de  cineastas de primeiro plano. Jean-Pierre Léaud, que participou em sete títulos do primeiro e em dez do segundo, constituiu uma espécie de elo de ligação entre universos criativos, que se iam dissemelhando cada vez mais. O que justifica a apreciação de Marin Karmitz, quando assevera que teria gostado de trabalhar com ambos nessa altura, para aprender com um como se contava uma história e com o outro como se a destruía, sendo ambas válidas.
Godard foi derivando para o papel de revolucionário provocador, enquanto Truffaut acomodou-se ao papel de cinéfilo, de Senhor Cinema. Um ganhou a imagem de «bad boy«, cabendo ao outro o de bonzinho. Mas a amizade entre os dois ainda subsistia levando-os a partilhar combates como o que os uniu na defesa de Henri Langlois, quando o governo o demitiu de diretor da Cinemateca Francesa. André Malraux, ministro de De Gaulle, acabou por reconhecer a derrota perante a dimensão do movimento de contestação lançado pelos dois cineastas, readmitindo Langlois ao fim de poucas semanas.
Seguiu-se o Maio 68, que não os deixou indiferentes concertando-os no derradeiro combate em que partilharam a trincheira no Festival de Cannes, que obrigaram a suspender. Mas a divergência entre ambos aumentou a partir daí: Truffaut não mudou nada no seu cinema, prosseguindo no tipo de filmes, que vinha rodando até aí, como se pode constatar com «A Sereia do Mississipi» ou « O Menino Selvagem». Pelo contrário Godard afiançou haver um cinema antes e pós-maio 68 participando na criação do Grupo Dziga Vertov para rodar projetos abertamente políticos e, em que a identidade do realizador, se diluía na de todos os elementos da equipa, considerados corresponsáveis com idêntica importância. As opressões de todo o tipo e onde quer que se verificassem passaram a constituir o objetivo do que filmava.
Na condição de burguês abastado Truffaut passou a considerar que não lhe interessarem os filmes de Godard, sentimento correspondido por este, que erigiu o ex-amigo como símbolo do que mais execrava na sociedade capitalista.
Em 1973 os dois já se ignoravam há cinco anos, quando ocorreu a estreia de «A Noite Americana» sobre a rodagem de um filme, do primeiro ao último dia de trabalho de uma mesma equipa de atores e de técnicos. Ora, Truffaut, em vez de representar o modo como trabalhava, criou uma fantasia sobre o que teria sido o cinema do passado entretanto abandonado. Havia uma espécie de nostalgia sobre um cinema perdido algures numa idade dourada em que a graça e inocência ainda não tinham desaparecido. Godard, pelo contrário, porfiava na ideia de avançar para um novo cinema, que substituísse o que entendia como definitivamente ultrapassado. E sentiu repulsa pela traição de Truffaut a um tipo de cinema, que em tempos repudiara.
A resposta deste é consensualmente tida como brilhante, enquanto peça epistolográfica, mas de uma extrema violência na forma como pretendeu magoar o ex-amigo, tocando-o no que lhe era mais íntimo. Se já era evidente que existiam duas formas opostas de criar cinema na França de então, ela ainda mais se vincou, mesmo quando ambos trataram do mesmo tema, a infância, com «L’Argent de Poche» de Truffaut e «France/Tour/Détour/Deux Enfants» de Godard.
Em 1980 aconteceu o último grande duelo entre os dois: Truffaut rodou «O Último Metro» enquanto Godard surgia com «Sauve qui peut (la Vie)». Godard revelava-se cada vez mais experimental, aprofundando a relação entre o cinema e as artes plásticas. Truffaut, por seu lado, assinava o seu último grande filme, aquele que mais o aproximava de Renoir. Na cerimónia dos Césares, os dois viram-se nomeados para o prémio de melhor realizador e foi Truffaut a ganhá-lo. Jean Luc ainda faz o gesto de cumprimentar o vencedor, mas este escusou-se a corresponder. Foi a última vez que estiveram próximos um do outro, porque o cancro logo cuidaria de acelerar o encontro de François com o seu derradeiro ato.

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