sábado, agosto 03, 2019

(S) As intemporais personagens românticas e fatais do século XIX


No século XIX a ópera converteu-se num espetáculo popular, que se exportava mundialmente e mostrava como as mais modestas condições de vida podiam suscitar intrigas dramáticas, que interessassem os seus apreciadores.
Atentos às alterações sociais do seu tempo, aos escritores e aos compositores não  passava despercebida a acelerada movimentação de um fluxo ininterrupto de camponeses para as cidades, onde proletarizavam-se nas fábricas ou, no caso de muitas das mulheres, acabavam por se prostituir. Numa sociedade em que o sistema de trocas era definitivamente ultrapassado pela primazia do dinheiro, que tudo comprava ou vendia, a exploração  denunciada por Marx e Engels ganhava contornos particularmente gritantes. E, porque o Romantismo e o Realismo se mesclavam até este dar o outro como obsolescente, a tuberculose servia de elo comum, não só demonstrando quanto a beleza e a própria vida poderiam mostrar-se efémeras, mas também constituindo argumento de denúncia da miséria dos mais desvalidos.
Foi nesse contexto, que surgiram três grandes personagens femininos - Carmen, Violetta e Mimi - que não só contribuíram para operarem avanços na emancipação feminina, mas continuam a ser papéis muito desejados pelas sucessivas gerações de divas, que se vão sucedendo nos principais palcos europeus e americanos. Todas elas comungaram a prévia existência como personagens literárias através das quais os seus criadores verteram para o papel pessoas realmente existentes.  A Violetta da «Traviata» foi uma cortesã, que Alexandre Dumas (filho) amou quando a tuberculose estava em vias de lhe causar precoce passamento.  «A Dama das Camélias» constituiu a sua tentativa de a imortalizar.  A Mimi da «La Bohème» de Puccini foi a transposição para a ópera da amante do escritor Henry Murger, que a tomara por modelo do seu romance «Scênes de la Vie Bohême». Carmen foi uma cigana, que trabalhara efetivamente na indústria tabaqueira de Sevilha e a quem o amante matara numa crise de ciúmes. A história, contada a Prosper Mérimée, logo foi por ele ficcionada no papel, mas seria Georges Bizet a dar-lhe a dimensão épica, que lhe associamos.
Os sucessos literários foram mitigados só na Ópera ganhando expressão a força de carácter dessas mulheres condenadas a trágicos desenlaces. Rompendo com séculos de subserviência feminina elas reivindicavam o direito de amarem quem queriam, mesmo que delas desmerecessem os amantes, ora por serem burgueses poltrões, ora por lhes exigirem mais do que elas quereriam oferecer-lhes.
Ao chegar-se à beira do século XX as mulheres começavam a reivindicar direitos, nomeadamente o de votarem na eleição de governantes, que sempre lhos haviam negado. Talvez seja esse um dos fatores, que justificam a intemporalidade das três personagens novecentistas: mesmo sofrendo com os efeitos da sua determinação elas sabem muito bem o que querem e estão decididas a consegui-lo.

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