sábado, agosto 24, 2019

(DL) «Les petits de Décembre» de Kaouther Adimi


«Argel em fevereiro. As rajadas de vento, a chuva fina, a queda de temperatura. A cidade afoga-se e afoga os seus habitantes. É difícil andar por causa da lama. Hesita-se antes de sair, nunca existe suficiente proteção. Congela-se nos autocarros, as portas das salas de aula batem por causa das janelas partidas, os lençóis nos terraços estão encharcados.
O céu cobre-se de nuvens cinzentas, carregadas de chuva, que logo fustiga as cidades do interior. As árvores, com galhos quebrados, assustam os transeuntes. As aves não se fazem ouvir. As crianças regressam ensopadas da escola, os pequenos sapatos manchados de lama.
No centro da cidade, os carros movem-se com dificuldade. Os polícias vestiram encerados transparentes por cima das fardas azuis e tentam ordenar o caótico trânsito. Servem para alguma coisa? São de maior utilidade do que um banal semáforo? A resposta é óbvia e cem por cento dos argelinos consideram-nos muito mais responsáveis pela atroz circulação do que pela sua regulação. Os próprios polícias adivinham-no, o que os torna facilmente agressivos. A transferência para tal tarefa é sentida como punição, até mesmo humilhação. Qualquer pequeno chefe, que se sinta aborrecido, pode impor ao subordinado várias semanas num qualquer cruzamento em pleno inverno ou sob o sol escaldante do verão.
Formou-se um enorme engarrafamento junto à ravina da Mulher Selvagem. Os condutores enfurecem-se, insultam-se, avançam milímetro a milímetro. Na neblina as crianças, sentadas nos bancos traseiros, tentam ver essa famosa mulher selvagem que as fascina. Parece que no século XIX morava ali com os filhos, que criara sozinha desde a morte do marido. Num dia particularmente bonito, a família foi fazer um piquenique na floresta de Oued Kniss. As crianças adoraram caminhar até lá. Sabiam que não tinham permissão para aproximar-se da ravina, mas eram crianças que adoravam correr e brigar. A mãe, exausta, adormeceu debaixo de uma árvore. Quando acordou os filhos tinham desaparecido!
Os vizinhos, os amigos, os policias revistaram o bairro. Quando a noite caiu, a busca foi suspensa. A mãe recusou-se a ir para casa, continuou a gritar os nomes dos filhos. Enlouqueceu, decidida a nunca mais deixar a floresta.»
Neste início do romance de Kaouther Adimi estão presentes vários dos elementos, que figurarão na história, já reconhecida como premonitória em relação à situação política atual da Argélia. Há um decrépito poder militar renitente em devolver ao povo a capacidade de decidir sobre os seus dirigentes e estamos perante a revolta juvenil assumida por miúdos, que costumavam utilizar um campo baldio para as suas futeboladas e dele ameaçados de expulsão por dois generais apostados em ocupá-lo com vivendas para seu ilegítimo lucro.
O caso aconteceu de facto e os generais viram-se rodeados, desarmados e expulsos do local pela população, o que demonstrou a precariedade da sua pretérita e aparente autoridade.
Aos trinta e três anos a escritora confirma a propensão para abordar situações concretas com pessoas reais, que se tornam seu fértil material de ficção.

Sem comentários: