quinta-feira, agosto 08, 2019

(DL) Das razões para relermos Toni Morrison


Durante esta semana tem sido feita inteira justiça a Toni Morrison através da multiplicação de textos e programas na imprensa internacional, que dão conta da sua importância na literatura norte-americana do último meio século. A escritora, agora desaparecida aos 88 anos, ganhara merecido destaque a partir de 1987, quando surgiu o mais conhecido dos seus romances - «Beloved» - e, sobretudo, seis anos depois, quando a Academia Sueca lhe atribuiu o Nobel da Literatura.
Uma das frases dela retidas por estes dias define-lhe a personalidade e a obra: “Nós morremos. Esse pode ser o sentido da vida. Mas nós fazemos a linguagem. Essa pode ser a medida das nossas vidas”.
Essa medida procurou dilatá-la quando, enquanto editora da Random House, porfiou em dar a conhecer a linguagem dos escritores negros, que tantas dificuldades tinham em se dar a conhecer. Mas também nos livros que, desde muito cedo, começou a escrever para cobrir uma lacuna, que existia na disponibilizada aos leitores do seu tempo. Importou-lhe dar existência a obras que denunciassem as torturas perpetradas pelos brancos contra os negros durante a escravatura e, depois, quando o segregacionismo procurou manter o anterior estado de coisas onde os confederados o haviam defendido pela força das armas. Mas não viria só a focalizar-se na questão racial, porque todas as demais desigualdades lhe mereceram atenção: as dos homens, que humilham e agridem fisicamente as mulheres; as dos ricos que exploram os pobres sem pinga de escrúpulo; ou até mesmo as desigualdades de rendimentos e oportunidades entre quem vive nas cidades e quem vegeta no interior rural. Nos seus livros assistimos às piores humilhações a que muitos dos seus personagens se sujeitam sem poderem contrariá-las.
«The Bluest Eye», publicado em 1970, já trazia implícitos esses temas através da miúda negra desejosa de imitar a idolatrada Shirley Temple, tornando-se loira e de olhos azuis. Quando década e meia depois congeminou o que viria a ser «Beloved» já o seu corpo temático se definira, surgindo explicitado nessa terrível história de uma mãe capaz de matar a filha por amor para a poupar aos sofrimentos da vida de escrava.
Toni conheceu, desde muito cedo, o sofrimento: aos dois anos a família teve de escapar dificilmente da casa em que vivia, porque o senhorio impacientara-se com o atraso no pagamento do aluguer e decidira incendiá-la. A Grande Depressão multiplicara exponencialmente o número de desempregados na comunidade branca, imagine-se o quanto ainda pior se revelou para a que, socialmente, estava no patamar inferior. Daí por diante a violência, a injustiça, o desespero, acompanharam-lhe o crescimento que, em contraponto, lhe possibilitou o contacto frutuoso com a tradição oral das mulheres mais velhas, cujas histórias lhe viriam a dar argumento para as futuras personagens femininas, quase todas elas sofridas, mas determinadas e dotadas de uma sabedoria ancestral. Nas suas dores também se forjaram grandes cumplicidades com as que melhor as poderiam compreender.
Razões de sobra para lhe revisitarmos a obra porque, infelizmente, permanecem atuais as injustiças de que se fez pertinente acusadora.

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