segunda-feira, agosto 05, 2019

(I) O que julgamos saber de nós mesmos


Octogenário, o neurologista Boris Cyrulnik continua a ser um dos mais estimulantes divulgadores dos mecanismos dos nossos cérebros, dando imenso prazer a possibilidade de assistirmos às suas conferências nem que seja pelos canais do youtube, como está a acontecer com a ocorrida dois anos atrás na Universidade de Nantes e tendo por tema as interpretações que fazemos de nós próprios.
Logo de início ele confronta-nos com algo de inesperado: temos maioritariamente uma memória sem imagens, porque 99% das informações utilizadas em cada momento decorrem do nosso inconsciente coletivo. O 1% remanescente, recolhido das nossas experiências, é, porém, fundamental por ser o que corresponde ao que somos, ao que vivemos e nos ensinou como nos comportarmos.
O cérebro é esculpido por tais experiências e tarda a amadurecer: nos primeiros anos as ligações entre as sinapses são tão limitadas, que esquecemos tudo quanto connosco sucedeu nessa fase inaugural da existência.
É pela consciência dessa realidade, que os países nórdicos andam a defender a entrada mais tardia na escolaridade, só sujeitando os alunos a provas de avaliação quando têm 11 ou 12 anos. Ou seja o exato contrário do que defendia o Crato de má memória. Este porventura redarguiria com os exemplos asiáticos, mas Cyrulnik logo os desbarata: se uma percentagem relativamente pequena de japoneses ou coreanos parece dar-se bem com a excessiva competitividade nos primeiros anos de escola, as consequências vêm-se revelando contraproducentes com o avolumar de casos de suicídio, de psicopatia e outras perturbações mentais. E, utilizando os critérios PISA, constata-se que os alunos asiáticos ficam aquém dos finlandeses ou noruegueses para os quais a escolaridade não tem absurda exigência.
A psicologia infantil tem de levar em conta a sua especificidade: razões sociais ou psiquiátricas têm permitido aos neurologistas detetar os danos causados em crianças sujeitas a criminoso isolamento na primeira fase do seu crescimento, não havendo quem com elas brinque ou sequer fale. Constata-se-lhes a atrofia do córtex pré-frontal e a hiperatividade da amígdala. Tal como tragicamente se comprovou nas crianças descobertas nos orfanatos de Ceausescu. Ao chegarem à adolescência elas sentiam tudo como uma ameaça, como se a informação constituísse uma agressão.
Cyrulnik que, com elas trabalhou, verificou ser a afetividade a resposta adequada para reverter esses défices cognitivos, garantindo-lhes a aquisição da nunca adquirida resiliência.

Sem comentários: