domingo, agosto 04, 2019

(DIM) Quando a poesia pode sobrepor-se à sordidez da realidade


Há uma cena em «Poesia» de Lee Chang-Dong, que pode passar despercebida a um espectador mais distraído, mas ajuda a entender a chave do filme: é quando uma vizinha pergunta a Mija o que está a fazer, sentada debaixo de uma árvore, e ela explica-lhe o prazer de a contemplar, detalhando-lhe os pormenores. O tronco e as frondosas folhas estavam ali, mas quem lhe passava ao lado nem dava pela sua presença. Porém, se detivesse a atenção, compreendia-lhe a existência própria, a singela identidade.
A sugestão faz escola porque, no final do filme, quando, em elegante elipse, estamos a depreender o desiderato da história da velha senhora, reparamos que a vizinha ficou contagiada com a sugestão e, também ela, se quedou debaixo da árvore a contemplá-la.
Esse é um pequeno pormenor numa história, que começa quando miúdos brincam à beira de um rio e dão com o cadáver flutuante de uma adolescente, que se suicidou atirando-se da ponte quase ali à vista. Mija toma conhecimento do sucedido, quando vai ao hospital para se fazer consultar e o médico aponta-lhe a forte possibilidade de estar a sentir os primeiros sintomas do Alzheimer. Fica definido um dos temas principais do filme: a memória, quer a que se perde pelo esquecimento, forçado ou fortuito, quer a que uma atitude moral pode redimir. Porque existe o risco do crime ficar impune: a adolescente suicidara-se porque, segundo o diário, seis colegas da escola a vinham repetidamente violando. Entre eles o neto de Mija, um personagem que, apesar de mal ter saído da puberdade, já merece os qualificativos de feio, porco e mau. A exemplo dos cúmplices.
Para embelezar os dias tão marcados pelo sórdido - mormente o que decorre do velho a quem presta serviços de apoio e a assedia sexualmente - Mija inscreve-se num curso de poesia e frequenta saraus em que ela é declamada. Alheia-se momentaneamente das pressões dos pais dos cinco outros rapazes, que lhe pedem 5 milhões de wons para acrescentar aos 25 já por ele coletados, destinados a indemnizar a mãe da rapariga e impedi-la de denunciar-lhes os filhos às autoridades policiais.
Durante um mês a velha Mija vive entre o dilema de não conseguir alcançar a criação poética, mesmo porfiando em tomar notas no seu pequeno bloco, e resolver o imbróglio em que o neto se envolveu. Decorrido esse prazo, ela conclui um belíssimo poema dedicado a Agnes, a rapariga morta, ao mesmo tempo que concretiza o que o seu sentido moral impõe.
Filme sensível, extremamente belo, «Poesia» faz pressupor a injustiça de desconhecermos o resto da filmografia do veterano realizador, que o assinou, e da espantosa atriz que o protagonizou.

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