Antes de embarcar como 1º Oficial Maquinista no paquete «Funchal», o chefe Lopes que, antes de trabalhar em terra na CTM, andara embarcado no «Vera Cruz» e no «Santa Maria», avisou-me:
- Está lixado! Nos paquetes o 1º é o cão do navio!
E explicou-me como, nas escalas em porto, todos saíam para terra menos o 1º, normalmente comprometido com trabalhos de manutenção a bordo ou, quando o navio ficava ao largo, deveria manter-se disponível para o que desse e viesse.
Nos três anos seguintes, tantos quantos levei de viagens a transportar turistas pelos quatro oceanos mais setentrionais do planeta, lembrei-me amiúde das palavras daquele colega mais velho, sobretudo quando via as excursões partirem para sítios tão apelativos como Machu Picchu, Perito Moreno ou Briskdall.
Em princípio também não teria oportunidade de pisar terra na ilha de Trindade, nas Caraíbas, se o motor de uma das lanchas utilizadas no transbordo dos passageiros do navio para terra não se tivesse avariado, assim me obrigando a ir com o Nelinho, um dos melhores artífices de que dispunha, socorre-la. Posso, assim, contar esse país da Commonwealth entre os mais de noventa, que os meus pés pisaram.
Não me deu foi tempo para constatar os muitos apelidos portugueses, que se encontram nos seus habitantes ou nos nomes das ruas e cuja razão de ser Ferreira Fernandes conta no seu livro «Madeirenses Errantes»: quando os protestantes convertidos pelo presbiteriano escocês Robert Kalley tiveram de fugir às agressões e tentativas de assassinato perpetradas em 1846 a mando da Igreja Católica do Funchal, encontraram nesta ilha um momentâneo refúgio.
Proibida a escravatura no Império Britânico, os braços desses madeirenses escorraçados da sua terra tornavam-se bastante oportunos para os donos das plantações de açúcar ou de cacau. E, apesar de terem-se mudado quase todos para o Illinois ou para o Utah passados quatro ou cinco anos, os que ficaram amancebaram-se com quem já lá estava e fizeram perdurar apelidos lusos, entretanto deturpados em variantes cada vez mais afastadas das originais.
Mas nem sempre: um dos escritores trinidenses mais conhecidos da primeira metade do século XX foi Alfie Mendes, cujos romances espelhavam bem o seu ideário comunista. E que teria um neto famoso, o realizador Sam Mendes, que ganharia um óscar com o filme «Beleza Americana».
Como Ferreira Fernandes constatou os foragidos de 1846 depressa fizeram por esquecer as perseguições conhecidas na ilha de que tinham partido e muitos até voltariam a regressar ao credo católico. Mas, mesmo nos descendentes de uns e de outros, continuou a encontrar-se quem rejeitava o convívio com base nesse diferendo religioso.
Quer nesse mesmo «Funchal», quer noutros navios, que me fizeram aportar a outras daquelas ilhas caribenhas, pude constatar a existência de emigrantes portugueses nos sítios mais improváveis: em Antígua ou em Granada, por exemplo. Mas é crível que nada tivessem a ver com esse fluxo migratório de um século atrás, quando a intolerância religiosa fazia com que compatriotas nossos fossem expulsos dos seus lares.
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