segunda-feira, dezembro 09, 2019

Inquietações: o último sopro de vida


Para Chris, Dave e Duncan aquele era um dia normal de trabalho no leito do Mar do Norte a cem metros de profundidade. O coletor por onde os hidrocarbonetos ascendiam do milenar depósito até à superfície da plataforma carecia reparação e cabia-lhes iniciar a desmontagem de uma quartelada a substituir.
Depois se concluiria que aquele não era o momento adequado para tal fazer. Embora se reconheça na meteorologia da região a volubilidade de lançar inesperadas tempestades onde ilusórias bonanças parecem estáveis, o comandante poderia ter identificado no horizonte os sinais da tormenta que se seguiria. Não o fez e, de súbito, a lei de Murphy demonstrou a pertinência. As ondas avolumaram-se e tornaram periclitante a posição do navio. Os servidores, de controle automático do leme e das máquinas propulsoras baquearam sucessivamente e, em poucos minutos, estavam a milhas de distância das coordenadas donde nunca deveriam ter-se apartado. Mas, pior do que isso, fora do pequeno sino de mergulho e enfiados nos fatos hiperbáricos, Chris e Dave já iniciavam a desmontagem do tubo.
A ordem de regresso ao pequeno aparelho, donde Duncan os apoiava, revelou-se tardia. É que o cordão umbilical por onde Chris recebia a água quente e o ar para respirar, prendeu-se na estrutura da plataforma e não conseguiu libertá-lo. Pelo contrário ela ganhou tensão, que a rutura adivinhou-se inevitável ao fim de alguns segundos. Dave já estava quase a chegar à salvação, quando compreendeu o que se passava e retrocedeu. Mas o próprio cordão só deixou-o aproximar a dois metros do companheiro com cujo olhar se cruzou no momento em que a falha se consumou e o viu desaparecer na escuridão que os rodeava.
No entretanto, à superfície, o supervisor tomou a desesperada decisão de desligar os servidores esperançado que do reboot resultasse a capacidade de novamente aproximar o navio do sítio donde nunca deveria ter saído. E fez sair uma pequena câmara-robô ao encontro de Chris a aferir-lhe a localização. No relógio os minutos iam passando e todos sabiam que, sem a interrompida ligação, restariam cinco minutos de ar a Chris das garrafas integradas no fato de mergulho.
Os computadores de bordo voltaram a operar normalmente, mas a tempestade impedia que acorressem ao local com a rapidez que a emergência justificava. Valeu-lhes que a câmara detetou o mergulhador perdido e deu conta que ainda estava vivo, prostrado num dos estrados da plataforma, a acenar debilmente para o flash doaparelho, que sabia enviado por quem tudo faria para o salvar.
Dave voltou a procurar o parceiro no breu circundante, mas agora guiado pelas informações que lhe iam transmitindo. Confessaria depois estar num estado de letargia, entre a intuição de ser já cadáver quem recuperaria e o autoimposto esvaziamento da mente para tal não pensar. É que os cinco minutos há muito se haviam esgotado e a demora excedera os vinte. Não havia como imaginar na possibilidade de Chris ainda estar vivo.
Essa conclusão também a teve o supervisor à superfície: a câmara-robô apanhara os momentos em que a mão de Chris ainda tremia por causa da hipotermia, mas logo se enrijara na imobilidade dando conta da perda da consciência, quiçá da própria vida.
Ao chegar ao corpo inerte Dave não quis ver qual era o seu estado, tal era a sua letargia. Apenas sentia o imperativo de o arrastar consigo até ao sino, mesmo que naquele estado, ele pesasse toneladas.
O relógio prosseguia inexorável no avanço. Passavam trinta e seis minutos sobre o momento da rutura do cordão de apoio, quando Duncan recebeu o corpo e lhe retirou o capacete. De imediato fez-lhe o boca-a-boca, tentando ressuscita-lo à custa de prolongadas exalações do seu próprio ar. Exausto, ao lado, Dave pressentia serem infrutíferos tais esforços. Mas, de súbito, Chris deu sinal de poder reagir e Duncan mais porfiou na manobra de salvamento. Que resultou, porquanto, segundos depois, muito fraco e desnorteado, o provisório morto revelou-se assertivo na reação.
Semanas depois, já casado com a noiva, que julgara nunca mais rever, Chris reconhecia não ter completa noção de como conseguira sobreviver. Homem de ciência não acreditava em milagres. Talvez a explicação residisse na capacidade dos tecidos em sobrepressão terem-se imbuído do oxigénio capaz de o prender à vida, mesmo quando a calma crescera em si e sentira que a passagem para a morte não envolvia outro sofrimento senão o da pena por tudo quanto deixaria por viver.

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