quinta-feira, dezembro 19, 2019

Apontamentos à margem das notícias: Da decadência da língua francesa à equiparação dos neoliberais com os extintos dinossauros


1. Aconteceu agora com Melvil Poupaud, ao vir apresentar o filme de François Ozon acabado de estrear («Graças a Deus»): deparou com quem, para o entrevistar, só em inglês pôde estabelecer a comunicação. Mas isso também tem ocorrido num programa da RTP («Todas as Palavras») em que sucessivos escritores franceses só aí têm tido cabimento, quando conseguem prescindir da sua língua e darem desajeitados pontapés na de Shakespeare.
Não foram precisas muitas décadas para que o francês perdesse a importância minha conhecida, quando entrei para o liceu. Nessa época, a meio da década de sessenta, tínhamos essa disciplina logo no ano inicial do que se designava como primeiro ciclo, prosseguindo na sua aprendizagem nos seguintes, quando frequentávamos o segundo ciclo e nos eram dados uns rudimentos de língua inglesa. Tanto bastava para que, qual candeia que vai à frente, a opção de muita gente da minha geração pendesse para tudo quanto culturalmente proviesse do Hexágono - os jornais, as revistas, os «livres de poche», os filmes e até as séries televisivas, que iam passando regularmente pelo único canal então existente.
Bem podiam os norte-americanos contra-atacar com os filmes de Hollywood, que muito atraso teriam de recuperar, tanto mais que essa era, igualmente, a época da descoberta dos grandes escritores como Zola ou Victor Hugo, de pensadores como Sartre ou Camus, de cineastas como Godard, Truffaut e todos os seus companheiros da Nouvelle Vague.
Os que vieram a seguir conheceram outras opções pedagógicas e renderam-se ao que provinha do universo anglo-saxónico, cuja valia nunca nos chegaria a convencer, mesmo passando pela pop dos «summer of love» e outras modas, que iam-se sucedendo umas às outras sem verdadeiramente nos conquistarem.
Hoje continuo a preferir a leitura do que se vai publicando em França do que no Reino Unido ou nos EUA. E continuo a olhar com maior interesse o que provém das cinematografias europeias do que dos estereotipados produtos de além-Atlântico. Mas reconheço ser, efetivamente, alguém de um tempo, que para trás já não regressa até porque, hoje em dia, a intelectualidade francesa imitou os partidos de esquerda em que dantes se reconhecia: quase se evaporaram.
2. Outra das manifestações desse declínio da língua está nos documentários produzidos em França e preferencialmente rodados em inglês para melhor se tornarem em produtos mundialmente exportáveis. Ainda agora o constatei num deles tendo por foco as expedições de Celine Cousteau pela Patagónia e que, ao contrário das rodadas em torno das do famoso avô, opta sem rebuços pelo inglês. Exemplo igualmente demonstrativo é o de alguns documentários vistos meses antes no canal franco-alemão ARTE na sua língua original e que passam a seguir na RTP já na versão dobrada em inglês por terem sido adquiridas nas feiras de produtos audiovisuais em que o cânone anglo-saxónico se tornou inexorável.
3. Esse documentário acabado de referenciar deu-nos igualmente uma surpreendente comparação para relativizarmos o nosso conceito de dimensão sobre tudo quanto vemos. Nele ficámos a saber que são necessários cinco elefantes adultos para que a soma dos seus pesos se equipare ao da língua de uma baleia azul. Ora, se começamos a espantar-nos com indicadores quantitativos melhor valerá que nos atenhamos aos que possam ter a ver com o nosso futuro próximo: os apelos para que a nossa alimentação integre menos carne melhor se compreendem se soubermos que são necessários 15400 litros de água para produzir um bife com um quilo, enquanto igual peso de arroz implica o consumo de 2500 litros desse precioso recurso. Ou que as explorações intensivas de animais para a alimentação humana produzem mais gases de estufa do que a soma de todos os transportes, porque ascendem a 14,5% do total dos que sobem para a atmosfera.
Contra mim falo - já que estou nesse universo! - quando se considera urgente o combate à obesidade na população humana, dado já constituir evidência em dois mil milhões de pessoas e  ultrapassar os 25% de quantos vivem nos principais países desenvolvidos. Seja para corresponder aos apelos das Gretas Thunbergs, que vão emergindo aqui e ali, ou seja de motu próprio, importa prescindir o mais possível das cadeias de fast food e optar pela cozinha tradicional feita de ingredientes produzidos localmente. O futuro aponta para as tendências dos que professam o vegetarianismo ou o bio, muito embora, no momento presente, apenas 1,4% das terras aráveis do mundo estejam dedicadas a essa nova fileira produtiva do agroalimentar.
4. A mudança de paradigma no que comemos está correlacionada com a evolução para uma sociedade de pós-crescimento. Muitos já sabem que quem teima no discurso do eterno crescimento neste planeta com recursos limitados, ou é doido ou... economista! A incompatibilidade do PIB com os indicadores ilustrativos do desenvolvimento social e das desigualdades tenderá a remeter para o caixote do lixo o tipo de discurso politico-ideológico dos neoliberais. Eles não sabem, nem sonham que, adaptando as palavras conhecidas da boca do porta Al Berto, os dinossauros ainda existem. E são eles!

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