sábado, dezembro 14, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Radio Days» de Woody Allen (1987)


As décadas de trinta e de quarenta do século passado foram aquelas em que a rádio conheceu os seus tempos áureos. Na que se seguiria a televisão viria alterar os hábitos, sobretudo os de suscitar nos ouvintes o prodigioso exercício de imaginação de conferirem imagens ao que ouviam.
A rádio informava e distraia, mas para Joe, o narrador e alter ego  do próprio Woody Allen, persistiria na memória de adulto pelas músicas antigas e histórias indelevelmente associadas à sua infância. Por exemplo a do início do filme  quando os ladrões de uma residência interromperam a operação para responderem às perguntas de um concurso radiofónico e, no dia seguinte, causaram uma enorme surpresa nos que se sentiam suas vítimas.

É pela interação de toda a família com o que ia ouvindo, que ficamos a conhecer os seus elementos: a mãe a beber o café matinal com os sofisticados Irene e Roger, o pai envergonhado com a profissão e a imaginar estapafúrdias hipóteses de enriquecer, o tio Abe e a abundante quantidade de peixe diariamente trazida para casa, a tia Béa e a sempiterna frustração de não encontrar o príncipe encantado tanto mais que os rapazes casadoiros haviam partido para a guerra.

Os amigos da escola serviam a Joe de cúmplices na procura de submarinos alemães ao largo da praia onde habitavam, mas sobretudo como atónitos voyeurs aa partilharem a visão da desnudada vizinha, que virá a ser sua professora. Ao som de «Babalu» os mistérios do sexo começavam-se a desvendar.

E que dizer do brilho e glamour de Manhattan, quando, com a tia e um dos ocasionais namorados, ficara a conhecer o Radio City Music Hall? Nele pontificava Sally White, uma das estrelas de então, cuja história fora uma das muitos que colecionara.

Mia Farrow  - então companheira de Woody Allen! - protagoniza essa rapariga com uma voz e um sotaque inaceitáveis para a rádio, mas para ela contratada a expensas de um gangster, que começara por a querer assassinar enquanto testemunha incómoda do crime por ele perpetrado e, sobretudo, depois de competentes aulas de dicção. Se o ataque a Pearl Harbour fizera atrasar a sua estreia, depressa vingaria enquanto bem sucedida cronista de fofocas sobre celebridades.

Não é apenas o episódio inaugural sobre a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial a surgir aqui representado, porque também se evoca a famosa adaptação de «A Guerra dos Mundos» de H.G. Wells pelo Mercury Theatre de Orson Welles, que tanto assombraria a América numa noite do ano de 1938. Um dos que não ganharia para o susto seria precisamente um dos efémeros namorados da tia Béa. Mas há também um outro momento inesquecível relacionado com a noite inteira em que os ouvintes acompanharam a par-e-passo a tentativa de salvamento de uma criança num poço até ao momento em que os repórteres deram conta do seu regresso à superfície já como cadáver.

A recordação dessa época conclui-se no primeiro dia de 1944, quando Joe é acordado propositadamente para assistir à entrada no novo ano e as estrelas da rádio reúnem-se no telhado do edifício para celebrarem a ocasião com sofisticação e muito frio sem imaginarem quão próximas estavam do final de um tempo em que as suas vozes iriam ficar progressivamente mais esquecidas. Mas dificilmente encontramos filme de Woody Allen em que seja tão forte e comovente o sentimento de nostalgia, porque definitivamente ficara muito atrás o encanto da inocência perdida...

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