quarta-feira, dezembro 25, 2019

Diário de Leituras: A boçalidade dos atuais aprendizes de ditadores


Em 1967, quando Miguel Angel Asturias ganhou o Prémio Nobel da Literatura, a Academia Sueca considerou «O Senhor Presidente» uma sátira grandiosa e trágica, “que escarnece do protótipo do ditador latino-americano, que surgira em vários países no início do século e desde então frequente, com a sua presença a ser mantida pela mecânica da tirania capaz de transformar num inferno o dia-a-dia do comum dos mortais. O vigor apaixonado de Asturias na evocação do terror e da desconfiança, que envenenam a atmosfera social da época, faz do livro um simultâneo desafio e um ato estético inestimável”.
Por essa altura Salazar ainda não caíra da cadeira, mas multiplicavam-se os sinais crepusculares anunciadores do fim do regime. Os pides continuavam a assombrar as cidades, sobretudo de madrugada, quando vinham buscar os mais imprevidentes na ação militante, mas tornava-se ininterrupto o fluxo de jovens de partida para França, a Suécia ou a Holanda em busca do asilo, que lhes evitava a participação na execrada guerra. E os estropiados, se não mesmo os mortos na Guiné, em Angola ou Moçambique, só incrementavam a crescente incompreensão com o desperdício imposto a toda uma geração.
Não me recordo quando soube da existência deste romance, que tão bem descrevia a realidade concentracionária onde até se desconfiava da permeabilidade das paredes. “Têm ouvidos!” dizia-se lá em casa para incitar a, quanto muito, só ciciar o que parecesse mais inaceitável aos esbirros do ditador. Porque esses até poderiam estar demasiado perto ou não era verdade que um tio por afinidade, verberado por não gostar de trabalhar, passava os dias na taberna da aldeia, ao que se suspeitava a ouvir as conversas dos que aí pudessem denunciar a vontade de tudo virar do avesso?
Duvido que «O Senhor Presidente» tenha conhecido tradução para português enquanto a sua réplica nacional não foi definitivamente enterrada em Santa Comba. E se tiver chegado às livrarias na falsa primavera marcelista, poderá ter-se limitado a aproveitar a janela de oportunidade dos dois ou três primeiros anos, aqueles em que o padrinho do atual presidente ainda iludia quem nele queria ver um reformador, porque logo a seguir, desmascarado definitivamente no rosto de sempre, logo a Pide/DGS e a Censura retomaram os padrões anteriores.
À distância de tantas décadas - sobretudo em relação à efetiva conclusão do romance por Asturias - o «Senhor Presidente» perdeu alguma da sua atualidade. Porque os candidatos a ditadores de hoje não conseguem criar em seu torno a natureza sobrenatural, que por magia pudesse tolher quem os quisesse derrubar. Não são vistos como possuidores de uma áurea divina e distanciada, que suscite o fervor dos seus apaniguados. Em vez do ser superior e quase invisível, prima pelo comportamento boçal, que é o dos seus apoiantes, momentaneamente convencidos das vantagens de terem a liderá-los quem a eles mesmos se assemelha.  Por isso são candidatos de pacotilha, que ora parecem ter um poder imenso num dia, ora no outro suscitam a atónita incompreensão dos ex-prosélitos quanto aos motivos para terem experimentado tão inexplicável adesão.

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