sábado, dezembro 21, 2019

Inquietações: A música de Charles Ives, os filmes de Wavrin e os cumes de Messner


1. Um dia perguntaram a Charles Ives, porque não compunha música à medida do agrado de quem a pudesse ouvir. Ao que ele redarguiu que era assim que, dentro de si, a ouvia.
O contacto com as dissonâncias iniciara-se cedo, quando via o pai - ovelha ronhosa de uma família de banqueiros do final do século XIX - a dar-se ao prazer de contratar duas bandas para tocarem temas diferentes na mesma praça enquanto se movimentavam em sentido contrário para aferir até que ponto resultaria interessante a conjunção dos sons por ambas emitidos.
Hiperativo, o jovem Ives era conhecido em Yale como o «bólide» por nunca parar sossegado e, saído da universidade, assim continuou, porque, ao mesmo tempo que fundava uma das principais seguradoras de Nova Iorque com sede em Wall Street, nunca deixava de compor sinfonias e outras peças, quando vivia o dia de descanso dominical, ou mesmo durante a semana, quando era capaz de ficar de volta das pautas até às cinco da manhã, saindo de casa duas horas depois para cuidar do negócio a partir das oito.
Decididamente avançado para a época só décadas depois é que as várias expressões musicais norte-americanas o tomaram como guia do que a segunda metade do século XX registaria criativamente quer na musica erudita (John Adams toma-o como referência incontornável do rumo tomado pela sua obra!), quer no jazz. E Ives deixou uma mensagem, que constitui por si mesma, um verdadeiro programa de vida: a de não nos devermos ater apenas às questões que estão respondidas, por se revelarem estultas na sua importância prática. Maior interesse assumem as que continuam sem resposta e e nos desafiam a encontra-la. Ou outra proposta não menos interessante: havendo sempre quem seja melhor ou pior que nós, só nos devemos preocupar em sermos tão bons quanto no-lo permitirem os talentos...
 2. A exemplo de Ives, Robert de Wavrin nasceu em berço de ouro e começou por tornar-se conhecido pelos piores motivos, quando ainda era muito jovem e merecera dos contemporâneos a mais viva condenação: um dia, ao passear com a caçadeira na floresta, que integrava o domínio da sua aristocrática família, deparou-se com dois miúdos da região a apanharem nozes. Sem sequer os questionar pegou na arma e disparou-lhes chumbos até se esgotarem, dando então meia volta sem lhes prestar os urgentes cuidados. Particularmente a rapariguinha de oito anos, que mais vezes se viu atingida e só por sorte não morreu.
Condenado a um ano de prisão Wavrin fugiu do país, tomando primeiro o rumo da Holanda e, depois da Argentina. Iniciava-se assim a primeira das muitas viagens que o levariam ao subcontinente americano nas décadas seguintes e lhe dariam o ensejo de contactar com muitas das tribos índias do Amazonas, do Orenoco e de outras regiões onde denotavam um quase desconhecimento da civilização dos brancos.
Regressando a tempo de se alistar na Primeira Guerra Mundial, quando ela já se aproximava do final, conseguiu, de forma oportunista, ver indultada a pena, que constava no seu cadastro.
Nas duas décadas seguintes, enquanto nova Guerra não era declarada, Wavrin esteve mais tempo na América do Sul do que na Bélgica natal, recebendo apoios quer da Real Sociedade de Geografia, quer da Pathé e outras distribuidoras cinematográficas, que lhe pagavam os filmes rodados e destinados a terem bastante sucesso nas espantadas plateias europeias.
Porventura curado dos tiques iniciais de aristocrata arrogante, Wavrin descobrira por si mesmo a igualdade entre todos os seres humanos ao fazer-se aceitar, como se familiar fosse, nas diversas tribos com que conviveu. Mormente com os temíveis jívaros, que o deixaram filmar todo o processo da Tsansa, ou seja do ritual que lhes permitia reduzir a minúscula dimensão a cabeça decapitada de um inimigo.
Hoje em dia todas essas tribos foram extintas, quer de facto, quer pelo nefasto processo de assimilação, que lhes sonegou a cultura identitária. Wavrin, que tão negativamente começara por ganhar fama junto dos compatriotas acabou por, de alguma forma, se redimir.
3. Ao contrário dos outros dois, Reinhold Messner nasceu numa família pobre do Tirol do Sul, quando a Segunda Guerra estava quase no seu fim. E, desde muito cedo, começou a escalar as montanhas já que, se elas ali estavam tão à mão, só podia ser para que ele e o irmão as vencessem. Quem o iniciou foi o pai, que o levou a chegar ao primeiro cume acima dos três mil metros de altitude, quando contava apenas cinco anos.
Desde então tornou-se num dos mais reputados alpinistas, contando no palmarés com a primeira ascensão do Evereste sem o auxílio de garrafas de oxigénio. E igualmente foi admirado como um dos mais ousados praticantes da escalada sem apoio de quaisquer ferramentas, que não fossem as suas mãos e pés.
Aos 75 anos debate-se com a questão de saber a razão para tudo quanto fez, já que, ao contrário de Ives ou Wavrin, só implicou a sua exclusiva satisfação. Nem compusera música para que outros a ouvissem nem recolhera testemunhos antropológicos ainda hoje valiosos objetos de estudo. Apenas fica dele a demonstração da capacidade humana para sempre exceder-se...

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