sábado, dezembro 28, 2019

Diário de Leituras: O Potomak de Jean Cocteau


Confesso não ter dado grande atenção à obra de Jean Cocteau até há pouco tempo, quando me veio ao encontro a sua prodigiosa arte do desenho e dos frescos, demonstrativa de como ele fora ainda mais versátil do que haviam significado os poemas, as peças de teatro e os filmes. De súbito senti imperiosa a superação de um manifesto défice quanto ao conhecimento dessa pluralidade de criações artísticas.
Descobri assim que ele nasceu em 1889, no mesmo ano em que também Charles Chaplin viera a este mundo. E que a morte ocorreu em 11 de outubro de 1963, ou seja na mesma semana em que eu entrava na primeira classe da escola primária. Compreensivelmente não dei por tal notícia, se é que a imprensa do regime deu dela conta (admito que o «Diário de Lisboa» ou o «República» o tenham feito!).
Na altura em que o Buíça e o Costa se martirizavam na Rua do Arsenal para que a República se apressasse entre nós, o jovem Cocteau tornava-se na coqueluche dos salões parisienses em que mal começara a dar os primeiros passos. Há quem lhe organize uma matinée teatral de apresentação dos poemas, que deleitam as mundanas e as mais recatadas, que o adotam qual criança prodígio. Não foram necessários os cento e dez anos entretanto decorridos para se concluir da banalidade desses textos manifestamente influenciados pelos que estavam então na moda.
Os mais lúcidos terão pensado, que o saudado adolescente  da nova temporada literária seria mais um daqueles fogos fátuos, cujo brilho mal dura um instante. Mas não contavam com a prodigiosa intuição do jovem Jean, que privava com Diaghilev e Stravinski, ficando fascinado com «A Sagração da Primavera». Aderindo às vanguardas artísticas distanciou-se dos seus confessos admiradores, demasiado formatados nos gostos para apreciarem aquilo que se anunciava como a prometedora rutura com todos os cânones vigentes..
Desafiado pelo criador dos «Ballets Russes», que o desafiara a surpreende-lo, Cocteau decidiu isolar-se para criar «Potomak» estava a Primeira Guerra prestes a ser declarada. Surgiu assim essa obra inovadora, com reflexões pertinentes e uma ironia incisiva, que já anunciava um estilo cintilante, feito de frases lapidares e de metáforas oníricas. Associando as prosas aos desenhos, assumiu-os como um Stradiviarius dos barómetros, um diapasão, um feudo dos fenómenos, centrados nas visitas ao misterioso aquário situado no subsolo da Place de la Madeleine e onde viveria um monstro gelatinoso inspirador da poesia. É o Potomak do título. E há, igualmente, uma viagem por mar na companhia de uns seres canibais.
Anos depois Cocteau reconheceu ser esta a obra fundadora do seu percurso literário, uma espécie de prefácio, onde já fazia esta significativa profissão de fé: «Cultiva em ti aquilo que o público te critica!»

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