sábado, dezembro 21, 2019

Diário das Imagens em Movimento: recordar Anna Karina em «Alphaville»


Embora pudesse igualmente citar «A Religiosa» de Rivette ou «Encontro em Bray» de Delvaux como outros filmes memoráveis com Anna Karina - deixando as sete interpretações em filmes de Jean Luc Godard para seu aprofundamento ulterior - torna-se incontornável a tentação de aqui assinalar «Alphaville» como um dos filmes da minha vida. Porque, quando o vi pela primeira vez, considerei desafiante a ideia de substituir uma nave espacial por um automóvel e um planeta distante por uma arquitetura muito na moda nessa década de sessenta, a meio da qual foi rodado.
Não precisamos de gadgets nem de efeitos especiais para aceitar a verosimilhança da missão para que Lemmy Caution foi destacado por conta dos «países exteriores»: situada a anos-luz da Terra, Alphaville é uma cidade desumanizada onde a demonstração de sentimentos é passível da pena de morte.
Quem ali manda é o tenebroso professor von Braun, que não se limita a ser  o homónimo do cientista nazi transferido da base de Peenemunde para o outro lado do Atlântico a fim de apoiar a criação de mísseis balísticos mais eficazes para a indústria militar norte-americana. Em 1965, data da realização do filme, ele era particularmente mediático por, à frente da NASA, liderar o programa «Apollo», que deveria pôr astronautas na Lua antes do fim da década, e Godard aproveita para denunciar o seu comprometimento com os campos de extermínio nazis ao mostrar filas de condenados à morte a serem friamente executados à beira de uma piscina.
Tão ameaçador quanto esse personagem é Alpha 60, o supercomputador que tudo controla na vida da cidade. Ainda antes de Kubrick inventar o HAL de «2001 Odisseia no Espaço», Godard criava aqui o primeiro grande vilão de entre os maléficos computadores ou robôs entretanto surgidos na História do Cinema nas décadas mais recentes.
O propósito de Lemmy Caution - que obedece ao tipo de detetive congeminado por Dashiell Hammett ou Raymond Chandler - será o de tornar disruptiva a quase perfeita organização da cidade. Porque tal qual o agente de ligação local o informa, mandam-no “salvar aqueles que choram”. Para isso contará com a ajuda da poesia, muito particularmente de «Capitale de la douleur» de Paul Éluard. Ademais surge-lhe de permeio Natascha von Braun, a filha do cientista, a dar-lhe acrescidos motivos para a salvar dessa distópica realidade, onde palavras como «amor» ou «porquê?» estão liminarmente proibidas.
A referência aos poemas de Éluard não é gratuita, porque o poeta francês escrevera-os quando a amante, Gala, o trocara por Salvador Dali e os versos haviam-lhe servido de catarse para o seu intenso desgosto. Ora o casamento entre Godard e Anna Karina estava a terminar, surgindo este filme como a derradeira tentativa dele em declarar-lhe um Amor que a ela já não bastava.
Existe, igualmente, uma filiação godardiana em relação ao mito de Orfeu e Eurídice tal qual Jean Cocteau o explorara em 1950. Já então o grego vencia à morte à custa dos próprios versos, recurso que Lemmy Caution replica quando pretende destruir o Alpha 60. Os personagens errantes, que Orfeu via a movimentarem-se como sonâmbulos no labirinto, servem de bitola para os habitantes de Alphaville iludirem quaisquer manifestações emocionais, que os pudessem denunciar e condenar. E, quando Lemmy consegue escapar com Natascha dá-lhe o mesmo conselho, que fora dado a Orfeu ao sair do Inferno: não olhar para trás.
Ver filmes de Godard significa, igualmente, tropeçar a cada instante em inúmeras citações: Jorge Luís Borges é dos que mais está presente neste filme com a sua conceção labiríntica do tempo, o ambiente concentracionário ou o controle obsessivo das palavras.
Na sequência em que se vê interrogado pelo computador o detetive defende-se com as palavras emprestadas de Bergson (“Acredito nos dados imediatos da consciência”), de Pascal (“O silêncio destes espaços infinitos intimida-me”) ou de Nietzsche (“Qual é o privilégio dos mortos? Não tornarem a morrer.”).
«Alphaville» é o filme com que Godard ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim desse ano ou em que Jean Pierre Léaud aparece pela primeira vez- mesmo que muito brevemente - num dos seus filmes. Mas há sobretudo o olhar de Anna Karina para os espectadores como que sobressaltando-os com a possibilidade de, sem se darem conta, darem passos acelerados para um futuro em que os ideais de liberdade possam ser postos seriamente em causa. Ora, nesse sentido, o filme permanece inquietantemente atual...

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