terça-feira, dezembro 10, 2019

Diário de Leitura: As confissões de um prisioneiro político


Um dos temas literários por excelência tem sido o dos personagens condenados a diversas formas de prisão, reais ou imaginárias, porque tanto impressiona o desespero descrito por Primo Levi sobre a sua experiência nos campos de concentração nazis com o do Gregor Samsa dentro do corpo de um inseto.
O cárcere de Ahmet Altan é bem concreto. Situa-se a 80 quilómetros de Istambul e simboliza a paranoia do Erdogan que, a  pretexto do mal explicado golpe de Estado de julho de 2016, julgou ter argumentos para prender e julgar quem contra si contrapõe exigências democráticas.
O que se vem passando na Turquia, desde que a deriva ditatorial do regime se acentuou, mereceria a sua ostracização ativa mas, lamentavelmente, continuamos a ver Erdogan nas fotografias de sucessivas cimeiras, quer ao lado de Trump ou de Putin - o que não se estranharia! - quer sobretudo de muito boa gente que deveria ter vergonha na cara e furtar-se a tão comprometedora companhia.
Os esbirros do regime só vieram buscar Ahmet dois meses depois desse estranho acontecimento, mas ele estava preparado. A exemplo dos que, na época dos processos de Moscovo, vestiam o fato mais quente e tinham a mala pronta todas as noites, porque sabiam o hábito do KGB em vir busca-los de madrugada para manter viva a dinâmica trituradora do estalinismo, Ahmet aguardou pelo momento em que se sabia fadado a repetir o destino do seu pai, Çetin Altan, também ele jornalista e escritor, condenado a prisão perpétua quarenta e cinco anos antes, por acusações semelhantes às suas: a de terrorismo marxista. Que no seu caso traduziu-se numa mirabolante sugestão subliminar de incentivo à revolta dos telespectadores de uma sua entrevista.
Os dezoito textos que conseguiu passar clandestinamente para fora da prisão andam a ser publicados por essa Europa fora e testemunham a escassa esperança de, aos 69 anos, ainda voltar a sentir o gosto da liberdade. Daí o título da edição francesa, acabada de publicar pela Actes Sud: «Je ne reverrai plus de monde».
Nessas páginas ele fala da escrita que “envolve o paradoxo de ser ao mesmo tempo um refúgio e uma forma de espera” e do quotidiano em que “um prisioneiro conta tudo, salvo o tempo. Esse, vai descobrindo-o”. E, contrariando o pessimismo que se cola a quase todas as páginas constata que “podem–me ter preso, mas nunca me conseguirão enclausurar. Porque como todos os escritores, tenho um poder mágico: atravesso as muralhas sem dificuldade.”
Apesar da aparente descrença do autor confiemos que se volte a abrir para ele a cidade sem muros nem ameias, entretanto liberta do monstro que a oprime.

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