Coincidência singular, que levaria alguns crédulos a acreditarem na conjugação dos astros, ou de quaisquer outras forças universais, vi «Corpo e Alma» de Ildikó Enyedi, quando estou quase a concluir o primeiro volume de «A Morte do Comendador» de Haruki Murakami. Tudo numa e noutra proposta diverge, mas em algo se conjugam: na utilização de um acontecimento sobrenatural a contrapor à racionalidade, que deveria guiar a existência dos seus protagonistas.
No filme da veterana realizadora húngara há a surpresa de um diretor financeiro e de uma inspetora de qualidade do mesmo matadouro em partilharem todas as noites o mesmo sonho: numa floresta coberta de neve há a aproximação de um veado e de uma corça num ritual de acasalamento, que nunca vemos consumado. A coincidência leva-os a aproximarem-se a medo, um do outro, vencendo os muitos traumas que, em ambos, se adivinham.
No romance do japonês não há a acostumada diluição de fronteiras entre a vigília e o sonho, presente noutros títulos anteriores da sua já vasta obra, mas um acontecimento perturbador: todas as madrugadas, entre as duas e meia e as quatro, ouve um sino a tinir, que conclui situar-se debaixo de um santuário erigido na floresta adjacente à casa onde mora. Com a ajuda do cliente, que o contratara para pintar o retrato, o narrador descobre uma câmara vazia onde só o sonoro artefacto jaz. Fica, então, a pergunta: quem o faria soar? E que relação tem com o estranho quadro, que descobrira embrulhado no sótão, e fora imperscrutável segredo do anterior ocupante? E que papel cabe a esse prestável Menshiki, que paga do seu bolso a retroescavadora e correspondentes operários necessários para lhe abrirem acesso à câmara subterrânea?
Estamos numa época em que a realidade, tão rica e complexa dos nossos dias, parece não bastar aos criadores para exercerem o seu mester, associando-lhe elementos excêntricos, senão mesmo esotéricos, que lhes justifique a almejada originalidade. E, no entanto, quão necessária nos é uma arte e uma literatura, que nos ajude a melhor interpretar o momento presente da luta de classes.
Sem comentários:
Enviar um comentário