terça-feira, fevereiro 19, 2019

(DIM) Porque importa ver «Vice», o filme sobre Dick Cheney


Como sucede nalguns filmes vale a pena ficar sentado a ver o genérico final a desfilar por nele surgir uma pequena cena, que melhor o clarifica para quem ainda precisa de mais explicações. Num grupo de discussão um sujeito boçal insurge-se contra o filme por se tratar de coisa liberal. O que leva outro a contrapor-lhe uma evidência: tudo quanto nele se mostrara eram factos concretos, que não admitiam contestação. Mas o primeiro levanta-se, agressivo, a querer agredir o interlocutor, porque para apoiantes de Trump, como orgulhosamente confessa ser, que importam os factos, quando as convicções são muito mais enraizadas e não admitem contraditório? Indiferentes a ambos, duas outras participantes do painel, manifestamente desinteressadas do que acabavam de ver, manifestam o entusiasmo de estar iminente a estreia de um filme de ação por que se sentirão bem mais estimuladas.
Nesses três minutos, que durará a cena, fica exemplificado o drama de uma América atual, que conta de um lado com um eleitorado fanático nas suas convicções ultraconservadoras, do outro uma elite esclarecida, ainda desconcertada com a forma como o seu país se amesquinhou e se tornou presa fácil das grandes corporações financeiras e industriais, que desprezam o poder representativo substituindo-o pela força dos seus lobistas. Entre eles figuram os indiferentes, os que não querem saber de nada e se distraem com entretenimentos acéfalos.
«Vice», o filme de Adam McKay, que dá a Christian Bale um dos desempenhos mais impressionantes do seu percurso cinematográfico, é de visão obrigatória. Porque mostra como pouco importam os eleitos para o Senado, para a Câmara dos Representantes ou para os vários poderes estatuais, porque mandam sempre os mesmos, os que têm a ganhar com as orientações tomadas pela Casa Branca para invadir países com muito petróleo no subsolo e assegurar às empresas norte-americanas os excelentes contratos com a reconstrução daquilo que as suas bombas previamente destruíram.
Noutra das cenas memoráveis do filme, quase no início, Dick Cheney consegue emprego como estagiário na Casa Branca durante a Administração Nixon e, ainda com a ingenuidade rústica de quem veio do Wyoming rural, questiona Donald Rumsfeld sobre qual a política defendida pelos seus chefes. Tolhido de riso, o futuro dono do Pentágono fecha-lhe a porta do gabinete na cara, confrontando-o com uma pergunta tão estúpida, porque todos eles são motivados pela facilidade de encherem os bolsos, mesmo sendo dóceis subordinados dos que lhes pagam as campanhas, financiam think tanks e compram televisões, rádios e jornais, sempre com o objetivo de pagarem menos impostos, reduzirem os custos e os direitos de quem para eles trabalham e terem os dinheiros públicos a abrirem-lhes novas oportunidades de negócios, que os livrem de quaisquer regulamentações.
Ao longo da narrativa corrobora-se o que já sabemos. George W. Bush era um idiota com um passado de alcoólico e a obsessão de agradar ao pai. Os atentados às Torres Gémeas foram singularmente oportunos para que se tornasse possível a invasão do Iraque, onde nenhumas armas de destruição maciça foram alguma vez encontradas, mas onde as companhias petrolíferas já tinham dividido entre si quais os poços, que lhes caberiam.
Pode-se considerar que os Estados Unidos nunca tiveram nada de admirável, porque todo seu poderio e riqueza foi conseguido à custa de muitos genocídios e escravaturas. Por isso mesmo, sempre que as ideias socialistas ali tentaram disseminar-se foram criminosamente perseguidas e assassinadas pelos sicários de Edgar Hoover. A nível internacional a CIA e o Pentágono multiplicaram-se - e multiplicam-se como agora constatamos na Venezuela! - em conspirações para removerem do poder quem não se dobra aos seus ditames imperialistas. Atrás de um golpe de Estado ou de uma ocupação militar lá vêm as privatizações, que beneficiam sempre os mesmos. E tal qual Snowden no-lo denunciou todas as nossas opiniões e comportamentos alimentam a imensa base de dados da NSA para serem utilizados em altura oportuna.
É por tudo isso que importa ver «Vice». Não porque nos traga novidades, que não saibamos. Mas porque no-las escarrapacham na cara com tanta veemência, que só não as verá quem continuar a querer ser cego.

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