sexta-feira, fevereiro 15, 2019

(DL) Os acasos de Paul Auster


Os Estados Unidos foram criados a partir de dois crimes imundos: o extermínio dos índios e a escravatura. Essa constatação honesta e incontestável é feita por Paul Auster no documentário, que sobre ele rodou Sabine Lidl no ano transato, centrado no monumental romance «4, 3, 2, 1».  Nele surgem quatro versões possíveis do percurso de vida de Archibald Isaac Ferguson, um jovem judeu nascido em 1947 em New Jersey, e cujo bisavô, segundo a lenda, viera de Minsk com cem rublos no bolso, aportando a Ellis Island no primeiro dia do século XX.
O dispositivo narrativo em que o livro se desenvolve procura responder à pergunta: “o que teria sido de nós, se...?” Daí que as quatro alternativas de Archie a partir das mesmas origens e gostos, divirjam em função das várias circunstâncias, que doravante o vão moldando. Querendo escrever um romance, que explorasse o universo infantil e adolescente, Auster enjeita, porém, a possibilidade de se assemelhar a um desses Archies. E, no entanto, lendo o romance e atendo-nos à biografia do escritor é fácil encontrar semelhanças com qualquer desses personagens. Por exemplo o fracasso conjugal dos pais, que lhe tanto alívio lhe proporcionaram quando se separaram. Embora amando os dois, reconhecera-lhes a incapacidade de serem felizes um com o outro.
Há também a época revolta de 1968 quando os estudantes das universidades norte-americanas protestaram ativamente contra a guerra do Vietname. O romance, que acaba por ser, igualmente, uma História sobre essa época, integra um dos Archies nas manifestações violentamente reprimidas pelos polícias, todos eles vindos de classes baixas e indignados por verem os filhos dos ricos, a quem nada tinha faltado, a porem em causa um modo de vida, que os beneficiara. Ora, duas semanas depois do assassinato de Martin Luther King, Paul Auster foi preso num desses confrontos entre universitários e as forças da repressão. Chegara à Universidade de Columbia em 1965, já com a intenção de vir a ser escritor, porque a reação à leitura de «Crime e Castigo», quando tinha quinze anos, fora tão perturbadora, que meteu na cabeça vir a criar romances tão ou mais impressionantes.
A exemplo do quarto Archie o percurso literário será semeado de escolhos: em 1979, quando contava 32 anos, viveu a mais profunda crise da sua vida. O primeiro casamento acabara, a depressão instalara-se e, durante um ano, nada conseguiu escrever, que se aproveitasse.  Foi o encontro com Siri Hustvedt a revelar-se determinante em tudo quanto viria a ser e a criar. Pouco depois, já como casal, atravessaram o rio e instalaram-se no então mal-afamado bairro de Brooklyn, donde nunca mais se mudaram desde então.
Wim Wenders, que é um dos seus amigos e admiradores, confessa que lhe agrada a narrativa muito visual, própria de quem viu muitos filmes ao longo de toda a vida e sabe como estruturar um argumento. Mas Auster é, sobretudo, um arguto analista do que tem sido a América nas décadas mais recentes e como ela nada aprendeu com os muitos erros, que cometeu, quer com os países e povos, que agrediu, quer consigo mesma, ao desvirtuar-se de toda a suposta superioridade moral que, em tempos, quis propagandear como inerente à sua própria identidade.

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