Quando se veem certos documentários de propaganda é curioso constatar como eles acabam por suscitar uma leitura absolutamente contrária à pretendida originalmente. Um bom exemplo disso mesmo é o que Anthony Dufour e Minju Song rodaram sobre o programa nuclear norte-coreano e a que deram o título de «A armadilha dos Kim» («La piège des Kim», 2019).
Iniciando-se com a cimeira de Singapura, quando Donald Trump e Kim Jong-un se encontraram pela primeira vez, os realizadores foram ouvir dezena e meia de comentadores todos eles parte interessada de um dos lados do conflito: ou pertenceram ao Pentágono, à CIA e aos círculos mais próximos de várias administrações norte-americanas, ou desempenharam idênticas funções junto de sucessivos presidentes sul-coreanos, ou ainda tiveram responsabilidades nos governos do secular inimigo japonês. Apenas dois ou três norte-coreanos são entrevistados, e todos eles apresentados como trânsfugas recebidos de braços abertos a sul do paralelo 38.
O que o documentário pretenderia demonstrar era o perigo do programa de armas nucleares dos diversos Kim, a que faltaria a legitimidade que, implicitamente, os realizadores reconhecem aos americanos. Perante a forma como as suas sucessivas administrações têm sido ludibriadas pelos três Kim, sugere-se reação mais musculada, senão mesmo ativamente intervencionista.
O problema está nas consequências de uma qualquer bravata do Pentágono contra Pyongyong: o arsenal norte-coreano arrasaria o vizinho do sul num instante e teria potencial para atingir território norte-americano com os seus mísseis balísticos. Fica, assim, demonstrada a esperteza estratégica dos três Kim, que conseguiram criar as condições necessárias para manterem o poder e dissuadirem os inimigos de os atingirem. Daí que haja quem no documentário lamente não ter havido uma agressão eficaz no início do primeiro mandato de Bill Clinton, quando a guerra foi evitada no último instante por ação contemporizadora de Jimmy Carter, que tomou, de motu próprio, a decisão de visitar Kim Il Sung.
O Kim atual começou por ser alvo da galhofa dos comentadores internacionais, mas, quando mandou fuzilar o tio e envenenar o meio-irmão, demonstrou que vinha determinado a dar sequência ao legado do avô e do pai. Hoje esses apressados analistas já deverão ter amarelecido o seu sorriso, quando constatam a sua capacidade em meter Trump no bolso, encetar um relacionamento animador com o homólogo do sul e ao conseguir, em pouco tempo, melhorar as condições de vida do seu povo que, se evoluir com a mesma rapidez com que o projeto nuclear ganhou dimensão, deixará de ter motivos para buscar eldorados do outro lado da fronteira.
Conclui-se, pois, que um filme pensado para acentuar a tónica na ditadura dos Kim, acaba por lhes fazer sobressair a argúcia com que se esquivaram à agressão imperialista.
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