sexta-feira, fevereiro 22, 2019

(DL) O terrível Eldorado que tantas mortes tem suscitado


Em 2006 o francês Laurent Gaudé publicou um romance que, infelizmente, continua a estar demasiado atual. «Eldorado» inicia-se com uma estranha mulher a dirigir-se a Salvatore Piracci para lhe fazer um pedido inesperado. Dois anos antes, enquanto comandante de uma fragata italiana ao largo da costa siciliana, incumbira-se de salvar os sobreviventes de uma leva de refugiados abandonados à sua sorte no meio do Mediterrâneo por uma tripulação, que cuidara de se pôr a milhas durante a noite. Agora impunha-lhe a responsabilidade moral de lhe dar a pistola com que mataria em Beirute ou Damasco o organizador daquela terrível viagem. Tal crápula, não só enriquecera com os quinhentos desgraçados, que lhe haviam pago fortunas para alcançarem a Europa, mas também congeminara a torpe malvadez de os condenar a uma morte terrível só evitada pela intervenção da embarcação militar italiana. Mas o filho dela tinha sofrido uma morte hedionda, que a assombraria até ao fim dos seus dias.
Piracci nunca mais será o mesmo e quando participa em nova operação de salvação de desgraçados abandonados por um navio líbio em cinco baleeiras numa noite de temporal, da qual só consegue encontrar duas, não evita o gesto indignado de agredir o comandante em causa, quando o encontra em terra e o sabe culpado de tantos corpos tragados pelas águas.
Poupando-se ao conselho militar, que o humilhará com uma repreensão ou, mesmo uma suspensão, decide abandonar tudo quanto até então fora. Compra um barco de pesca, aporta ao norte de África e irá morrer atropelado num descampado, quando já nada tinha para sobreviver. Mas antes desse desiderato trágico encontra Soleiman, um jovem que partira da aldeia natal e cumprira árdua e sofrida odisseia em busca desse eldorado, que Piracci gostaria de denunciar como falso, se acaso o quisessem efetivamente ouvir. Mas quem quer ouvir a descrição da realidade, quando só a ilusão pode justificar a vontade de conhecer vida menos madrasta?
Desta tragédia que, nos últimos anos, tem sido feita de multidões sujeitas a tanta violência e sofrimento para acederem ao que julgam ser a solução de todos os problemas, não conheço romance que dê melhor descrição de todas as variáveis nela em jogo. Gaudé não facilita o leitor, se estava à espera de piedosa narrativa com um final feliz para compensar o que de mais incómodo se vai passando pelo meio. Há bebés, que morrem de fome e de sede, cadáveres abandonados sem que ninguém lhes dê sepultura, pobres que roubam a outros pobres, porque os meios justificam os fins, mas sobretudo o alheamento de uma Europa falsamente rica, que não encara essas migrações com o sentido de humanidade, que deveria estar subjacente à sua suposta identidade judaico-cristã.

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