Confissões de um Coração Ardente. A peça esteve em cena no CCB até ontem e teve o mérito de proporcionar excelentes interpretações aos seis atores em cena, sem que nenhum deles se destacasse na homogeneidade dos seus desempenhos. O que me levou à questão de saber até que ponto um texto dramatúrgico deve ser excessivo na forma como aborda os temas em cena para que se fique com a sensação de se estar perante algo de raro, de muito acima da linha mediana, que nos serve de bitola de apreciação ao que vamos vendo.
Dostoievski é sempre um valor seguro, quando se procura criar algo de impressivo nos espectadores. E então, se em vez de se adaptar um dos conhecidos romances, os criadores da peça pegam em trechos esparsos de várias obras e lhes dão coerência num palco em que vemos cinco homens e uma mulher a comemorarem sabe-se lá o quê, mas questionando-se sem cessar sobre o Amor, a felicidade ou a crença numa qualquer utopia ou religião, estão criadas as condições para quase duas horas de uma tensão permanente. Porque, além de beberem demasiado e criarem uma nuvem sobre as cabeças à força de muito fumarem, os personagens agridem-se, insultam-se, humilham-se, inquietam-se. De vez em quando dançam, mas na lógica de espantarem os males que os afetam.
Há quem acredite em Deus, porque pior seria em tudo descrer, mas também o niilista, que não descansa enquanto não derruba todas as estátuas, Há o escritor inseguro, porque quase nada de extraordinário viveu. Há a mulher, que ali parece estar para os animar, mas atiça agravos por tomar o partido de um ou de outro.
Às tantas recordo o vivido há muitos anos, logo após a Revolução de Abril, quando alguém recamava ao nosso lado por se lhe deparar oferta cultural, que nada tinha a ver com o entretenimento procurado. Sentarmo-nos na plateia para ver esta peça, ou qualquer outra filiada nas mesmas intenções, implica o compromisso de nos deixarmos afetar pelas questões, que ali se colocam. Será possível a felicidade? Poderá um amor perdurar para além do efémero transe da paixão? Pode uma ideologia libertar-nos do tédio da mediocridade quotidiana? Não é para aligeirarmos o trabalho das meninges, mas para as estimularmos, as pormos a mexer...
Põe-se a hipótese de vivermos num momento histórico com alguns paralelismos com os do tempo dos românticos em que Dostoievski se integrava. Havia a perceção de existirem grandes injustiças e nenhuma perspetiva de as resolver. Pressentia-se a iminência de grandes mudanças, sem que se soubessem quais viriam a ser. E por tardarem as respostas sobrava o mal de vivre compensado nos excessos de álcool e de outras dependências mais ou menos tóxicas.
Na época em que os textos de Dostoievski foram escritos os bolcheviques ainda nem tinham nascido. As condições para a Revolução redentora apenas iam-se suscitando e consolidando. Mas muitos a ela aspiravam, mesmo sem de tal terem a consciência. E, hoje em dia, é isso mesmo que está a acontecer...
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