segunda-feira, setembro 03, 2018

(C) Ozono: um sucesso ambiental



Ronald Reagan e Margaret Thatcher foram dois improváveis militantes ecologistas, cuja ação foi fundamental para evitar um desastre ambiental de proporções incalculáveis. Pela primeira vez os Estados de todo o planeta conjugaram esforços para a resolução de um problema comum. Na altura em que está por solucionar o do aquecimento global é oportuno lembrar o sucesso, que foi o combate à rápida deterioração da camada de ozono.
Mas comecemos pelo princípio: à partida temos de lembrar Thomas Midgley, o bioquímico norteamericano que, desejoso de melhorar o nosso quotidiano, inventou os clorofluorocarbonetos (CFC’s) e o tetraetilchumbo para aditivar a gasolina, quaisquer deles altamente pernicioso para a poluição da atmosfera do planeta. Bem intencionado ele viria a ser um dos inventores mais amaldiçoados da História da Ciência nas décadas que se seguiriam. Não admira que, quando morreu, asfixiado por um novo invento a que se dedicava, tivesse havido quem encontrasse nesse desiderato, uma sugestiva fatalidade com o seu quê de coincidência justiceira.
Nos anos 20 do século passado os primeiros frigoríficos mais não eram do que caixas térmicas arrefecidas pelo gelo semanalmente adquirido a fornecedores em grandes blocos. Apareceram depois os primeiros frigoríficos mecânicos, que recorriam a fluidos explosivos ou tóxicos muito perigosos no caso de se escaparem dos seus circuitos fechados.
Os CFC’s vieram garantir uma resposta tecnológica eficaz, que anulavam esses riscos de toxicidade ou de explosão. Os freóns, tal como eram comummente designados, foram comercializados pela DuPont e apresentados como solução miraculosa para facilitar a expansão dos frigoríficos e arcas congeladoras à grande maioria dos consumidores.
Os CFC’s iriam conhecer ainda outro tipo de utilizações: o exército norte-americano recorreu a eles como agente propulsor de inseticidas durante a Segunda Guerra Mundial e, depois desse conflito bélico, esse mesmo efeito foi utilizado em lacas, perfumes e desodorizantes. Nos anos 50 já estavam a ser utilizados em todos os aparelhos de ar condicionado, em solventes e até nas «bombinhas» utilizadas pelos asmáticos.
Enquanto os fréons eram publicitados como produtos milagrosos um cientista britânico ia questionando-se sobre os seus efeitos na atmosfera terrestre.: James Lovelock, melhor conhecido por ter formulado a tese da equiparação da Terra a um ser vivo - Gaia. Nos anos sessenta investigou a qualidade do ar em torno da sua casa no campo do Dorset, sobretudo quando aí chegavam odores, que lhe lembravam o smog de Los Angeles.
Dado que os serviços meteorológicos negavam qualquer possibilidade de contaminação do ar, que justificasse esse cheiro, Lovelock criou um equipamento de medição ultrassensível capaz de detetar ínfimas quantidades de compostos químicos, interessando-lhe os que tivessem, sem equívocos, uma origem humana. Não tardou a identificar CFC’s nas massas de ar provenientes do oceano Atlântico.
Para excluir quaisquer dúvidas aproveitou uma viagem à Antártida para continuar a analisar amostras do ar nas diversas latitudes por que ia passando, concluindo surpreendentemente que, todas elas continham CFC’s. Foi quanto bastou para concluir que esses compostos químicos estáveis tinham-se disseminado por todo o planeta, tese que difundiu num artigo científico publicado na influente revista «Nature». Na altura, porém, não se alarmou dadas as quantidades mínimas detetadas, chegando a afirmar que os fréons em causa não representavam perigos de maior para quem os respirava.
Em 1973, pouco depois da publicação do artigo de Lovelock, o jovem investigador Mario Molina entrou para o Laboratório de Química da Universidade da Califórnia recebendo a incumbência do seu coordenador, Frank Sherwood Rowland, de aprofundar aqueles dados em função de uma hipótese precisa: se esses gases se iriam acumular numa localização precisa da atmosfera, e que efeitos causariam.
A camada de ozono situa-se entre os 20 e os 40 quilómetros de altitude em volta da Terra e tem um efeito de proteção imprescindível para que os raios ultravioleta do Sol não nos causem danos de maior. Ora Molina descobriu que, se os CFC’s eram estáveis nas camadas mais baixas da atmosfera, quando alcançavam as que mais elevadas, começavam a reagir, deles se dissociando o cloro, que destruía o imprescindível escudo protetor aí existente e a uma velocidade alarmante.
Na realidade, há milhões de anos, as primeiras criaturas vivas só tinham surgido quando a camada em causa tinha-se formado. A sua destruição levou Rowland a confessar à esposa o receio de estar iminente um apocalipse, com toda a Humanidade a ver-se vitimada com uma epidemia de cancro na pele, a agricultura a tornar-se inviável e os ecossistemas a colapsarem à escala global.
Em 1974, Molina e Rowland publicaram os resultados a que tinham chegado no seu estudo sem que houvesse a reação esperada de quem pudesse agir politicamente para evitar a previsível hecatombe. O facto de se tratar de um perigo invisível fundamentava o alheamento dos que deveriam sobressaltar-se de imediato. Acusados de alarmistas, de exagerados, Molina e Rowland foram desprezados.
Rowland, porém, não baixou os braços, intervindo publicamente no sentido de exigir a proibição imediata dos CFC’s nos aerossóis, onde eram exaustivamente utilizados. A reação não se fez esperar: os lobbies industriais conseguiram que ele deixasse de ser convidado para seminários e conferências, que frequentemente contavam com a sua participação. O estudo dos dois investigadores ameaçava um setor, que valia oito mil milhões de dólares anuais numa altura em que a economia estagnava. A Administração Nixon recusou liminarmente qualquer regulação, que impedisse a continuação dos negócios da DuPont, da Dow Chem ou da Union Carbide e algumas revistas chegavam a sugerir que Molina e Rowland eram agentes do KGB apostados em destruir um dos mais importantes setores industriais dos Estados Unidos.
Mas a geração, que vivera os anos da contracultura dos finais dos anos sessenta, assumira lugares-chave na sociedade americana enquanto juristas, economistas, cientistas e políticos, dispostos a lançarem-se na batalha dos aerossóis, tanto mais que surgiu por esses anos um best seller de Rachel Carson - «Silent Spring» - sobre os perigos dos pesticidas, que demonstrava quão nocivos poderiam ser os produtos químicos, até então apresentados exclusivamente como benéficos para quem os utilizava.
Em 1975 o debate atingiu tal dimensão, que ganhou expressão nacional na sitcom mais vista então nos lares americanos: «Tudo em Família», logo traduzida numa quebra significativa nas vendas de lacas e desodorizantes nas semanas que se seguiram. Nesse episódio o genro e a filha de Archie Bunker tinham uma conversa quase técnica sobre os malefícios desses produtos na cada vez mais divulgada camada de ozono. O Oregon tornou-se o primeiro Estado a proibir os aerossóis sendo imitado, nos meses seguintes, por muitos outros até se tornar regra seguida a nível federal.
Em breve chegou-se à conclusão, que banir os aerossóis não bastava para que a camada de ozono se livrasse do perigo de completa destruição. Os equipamentos de refrigeração e ar condicionado passaram a estar seguidamente na mira dos ambientalistas, mas a chegada de Reagan à Casa Branca fê-los temer o pior, tanto mais que começou por nomear uma defensora entusiasta dos interesses da indústria química - Anne Gorsuch -  para a EPA (Environmental Protection Agency).
Os cientistas não desmobilizaram e Steven Seidl conseguiu organizar um dossier bastante completo que impressionou Lee Thomas, nomeado para a EPA quando Reagan assumiu novo mandato. Foi este último quem convenceu o antigo cowboy de filmes medíocres de Hollywood a infletir a política favorável às  grandes empresas do setor, tanto mais que a NASA divulgara entretanto, novas provas irrefutáveis quanto à perda de ozono na atmosfera terrestre. 
As Nações Unidas, viram-se pressionadas na corrida contra o tempo, e aprovaram então a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozono. Mas os participantes desse encontro desconheciam que a equipa do cientista britânico Jonathan Shanklin detetara buracos de ozono nos céus da Antártida, demonstrativos da rapidez com que a situação se degradara. Se até então os piores cálculos apontavam para que uma situação desse tipo só se verificasse daí a um século, a denúncia da equipa britânica fez soar os mais vibrantes sinais de alarme a nível global. Ainda assim surgiram vozes dissonantes a apontar como causas do fenómeno a atividade vulcânica na Antártida ou desconhecidos fenómenos meteorológicos.
Enquanto os cientistas faziam novas medições na Antártida, altos funcionários em Washington mobilizavam-se para convencer o presidente Reagan da real perigosidade do perigo. O facto dele ter contraído um cancro na pele, faziam-no particularmente sensível aos riscos inerentes á exposição excessiva dos raios ultravioleta. John Negroponte, então no Departamento de Estado, recorda o ceticismo ativo do ministro do Interior ou do próprio conselheiro científico da Casa Branca. Mas a própria indústria química começava a preparar alternativas aos CFC’s.
A partir de voos que saíam da pista de Punta Arenas, no Chile, a química Susan Salomon confirmou a sua tese de explicação sobre a formação do buraco de ozono especificamente na Primavera, precisamente a época do ano em que as nuvens alcançavam altitudes mais elevadas da estratosfera e serviam de veículo de transporte para o cloro dele causador. Como em nenhuma outra região do globo essas nuvens conseguiam elevar-se tanto, concluía-se pela sua condição de agente físico do fenómeno.
Em Montréal, numa conferência convocada para se alcançar um acordo mundial sobre a redução significativa de CFC’s, Lee Thomas viu bloqueada a sua proposta pelos representantes da União Europeia, mas na noite de 16 de setembro de 1987 garantiu a assinatura do Protocolo ainda hoje em vigor, que começou por ser subscrito por mais de trinta países e onde se subscreveu o compromisso de redução em 50% da produção mundial dos CFC’s no prazo de doze anos.
Dentro da própria DuPont o cientista Mack MacFarland convenceu os patrões da necessidade de se travar completamente a produção, e não apenas reduzi-la, se se quisesse efetivamente infletir a degradação da camada de ozono. Ora, anos atrás, a empresa anunciara o compromisso público de o fazer se se comprovasse indubitavelmente a associação entre os CFC’s e os danos, que começavam a ser-lhes atribuídos.
Nessa altura surgiu outro apoio inesperado para a causa ecológica: Margaret Thatcher, que era uma inimiga radical de toda a regulação nas industrias, fez jus à formação académica em Química, ao compreender a contradição entre os seus valores ideológicos e a realidade científica. Por isso mesmo, nas Nações Unidas, fez um discurso contundente a propor que os países desenvolvidos apoiassem financeiramente os que o não eram para que conseguissem a eliminação dos CFC’s em todas as áreas em que a eles recorriam. Mario Molina e Sherwood Rowland viam, enfim, consagrada a posição, que andavam a defender há uma dezena de anos, quando se tinham apercebido da gravidade do problema. A Academia Sueca viria a consagrá-los com o Nobel em 1995.
Atualmente a percentagem de substâncias, que atacam a camada de ozono declina muito rapidamente, demonstrando que a regulação funciona. O buraco de ozono não se voltou a abrir e a espessura da camada recuperou a dimensão adequada para cumprir a sua função.
Uma ação concertada a nível mundial conseguiu solucionar uma ameaça, que se revelaria fatal num prazo muito curto. Mas a tarefa não está concluída, porque novos gases, os hidrofluorocarbonetos (HFC’s) substituíram os fréons nos equipamentos de refrigeração e de ar condicionado, e se não atacam o ozono, causam um efeito de estufa na atmosfera muito mais gravoso do que o dióxido de carbono. De entre os agentes químicos causadores do aquecimento global são eles os que se desenvolvem mais rapidamente. Por isso mesmo acelera-se a luta pela proibição total dos HFC’s.
Em 2016, na Conferência de Kigali, que reuniu os signatários do Protocolo de Montréal, o então secretário de Estado norte-americano, John Kerry, empenhou-se em conseguir a aprovação da emenda que doravante compromete a comunidade internacional a reduzir progressivamente o recurso aos hidrofluorocarbonetos até á eliminação total.
Hoje considera-se que se a batalha pela recuperação da camada de ozono representou um sucesso notável, a mesma mobilização tem de ser conseguida em defesa do clima, dos oceanos, dos ecossistemas e das espécies em vias de extinção. Serão necessários que, para tal, se encontrem dirigentes capazes de tomar decisões e demonstrem os seus benefícios, mesmo que sejam tão improváveis quanto o foram Ronald Reagan e Margaret Thatcher no seu tempo.
Está em causa a definição do princípio da precaução, que nos deveria instar a agir, quando os riscos são identificados. É que, quando todas as dúvidas são vencidas, já pode ser tarde demais...

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