quarta-feira, setembro 26, 2018

(DL) «Florinhas de Soror Nada - A Vida de uma Não-Santa» de Luísa Costa Gomes


Em 1991, durante uma estadia em Sines, entre duas viagens ao Golfo Pérsico para carregar crude num dos superpetroleiros então ainda existentes na frota mercante nacional, a minha mulher levou-me «Vida de Ramon», o romance que Luísa Costa Gomes acabara de publicar.  A leitura, com que me alimentei nos dias de largos mares e céus a dominarem o horizonte, deixou-me surpreendido, senão mesmo desorientado: era o tempo em que Cavaco Silva renovava a maioria absoluta como primeiro-ministro e estava atiçada a tendência para me focalizar na primazia das questões das lutas de classes e da urgência em forçar o determinismo anunciado pela minha absorção das ideias de Marx. O espanto era este: como é que, num mundo tão eivado de injustiças na distribuição de rendimentos, uma escritora escolhia como tema o percurso de um filósofo do século XIII, embora já falecido no século XIV, que muito divulgara a cultura muçulmana até assumir a soberba intenção de converter os infiéis ao catolicismo, acabando morto como mártir?

Uma abordagem aprofundada podia estabelecer paralelismos fundamentados com outros percursos mais recentes, e até bem atuais, em que gente ilustrada foi seduzida por ideias exactamente opostas daquelas que, em fase mais avançada da vida, execraram e combateram. Na época ficou-me essa análise pessoal, que desconhecia se estivera ou não nas intenções da autora, seja de forma mais consciente ou subconsciente.
Quando, meses atrás, iniciámos cá em casa a leitura em voz alta do romance «Florinhas de Soror Nada - A Vida de uma Não-Santa» voltei às questões de mais de um quarto de século atrás, muito embora elas tenham entretanto evoluído como resultado das circunstâncias, que as terão burilado. Mas cedo esse percurso de Teresa, que na puberdade anseia por imitar a dimensão martirológica da sua homónima de Ávila, evolui para uma rebeldia capaz de devolver à terra as inquietações ilusoriamente confiadas aos céus. Lemos sobre santos, que nem sequer conhecíamos, e enriquecemo-nos com uma observação aguda e irónica das realidades vivenciadas pela protagonista.
Ao longo da leitura questionamo-nos como é possível a existência de uma cultura religiosa baseada na aceitação, senão mesmo no desejo do sofrimento, como auto-estrada para o acesso facilitado à recompensa no Além. No fundo, como esse conceito de martírio, une católicos e muçulmanos (estes nas suas vertentes jiadistas!), como se a passagem por este suposto «vale de lágrimas» correspondesse a um mero detalhe no mais importante percurso da Alma pela sua imortal existência. Surpreende anotar como os dogmáticos, que consideram superior a sua crença e a querem impor aos demais, não podem compreender quanto incorrem num dos pecados, que deveriam evitar: a Soberba revelada pelo próprio Lúcifer, quando se revoltara contra Deus.
Essa Soberba é a que, ainda hoje, em Portugal, leva alguns a quererem impedir nos outros, que usem o seu corpo como queiram: interrompendo uma gravidez, casando com alguém do próprio sexo, recorrendo à morte assistida. A arrogante omnipotência dos que querem ser santos, sentindo-se superiores aos demais, é um pecado capital a denunciar, a desmascarar. E esse é um dos muitos méritos do romance de Luísa Costa Gomes, que sobre ele falará quando esta noite, pelas 21.30, o apresentar aos que comparecerem no Clube Gandaia em mais uma excelente iniciativa coordenada pelo António Fonseca.

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