No dia seguinte ao da exaltação do país com a vinda do papa, o tetra do Benfica e a vitória de Salvador Sobral na Eurovisão - a precipitar a alma de milhares, se não mesmo milhões, numa beatitude celestial! - eis que me vi a entrar no Inferno … e a adorar.
Uns minutos antes das quatro da tarde abriram-se as portas e eis que a fila de penitentes dispostos a viver a experiência teve a entrada franqueada pelas traseiras do palco no Teatro D. Maria II. Forma de viver por instantes a experiência do percurso de Dante e dos seu guia Virgílio pelos abismos dos pecadores. Ou não tanto, porque depressa entenderemos serem outras as aspirações de quantos ali se congregam nos diversos círculos: há o desejo de se descobrirem quem são, há o de alcançar a liberdade face aos ditames dos tiranos.
Não se trata de mostrar aos ainda vivos os perigos em que incorrem se se desviarem das normas estipuladas pelas igrejas: o próprio Dante pretendera tornar o seu livro de viagens numa crítica subtil aos grandes problemas do seu tempo, incluindo os dos constrangimentos ditados pelo fanatismo religioso.
Há também o reconhecimento de não sermos só os seres falantes, que com os outros se relacionam, mas também os que pensam e ponderam no que podem ou não dizer. Por isso há um ator e uma atriz a representarem o poeta vivo, que empreende a viagem à outra margem do Hades, mesmo que olhado com desconfiança por Caronte, E há outro ator e outra atriz a representarem o poeta, que fora seu inspirador, e agora o conduz para impedi-lo de se perder. E ainda há outro ator e outra atriz a fazerem de Beatriz, aquela que Dante tanto amara e de que, estranhamente, se parece ter olvidado.
Não é estória em que se entre facilmente. Os estímulos em palco são tantos, que nos sentimos focados num detalhe, mas a perder muitos outros que, em simultâneo, seriam igualmente importantes. Até porque nem sempre as falas acontecem em primeiro plano, havendo palavras ditas lá atrás, que pressentimos, mas não chegamos a captar. Intencionalmente, porque a encenação do João Brites não está ali para nos dar a papinha toda: este não é manifestamente espetáculo recomendável a néscios nem a mentecaptos, exigindo uma tal concentração, que o silêncio da plateia se maximiza.
E há, como vem sendo hábito no Bando, uma maravilhosa partitura de Jorge Salgueiro para nos mergulhar numa ambiência, ora estridente - porque esse tom agudo é próprio das Fúrias, que nos agridem os ouvidos e ameaçam o viajante! - mas sobretudo grandiloquente nos momentos em que nos sentimos à beira de uma proposta operática.
Exortados os sentidos, nem sempre dando oportunidade a que se afirme a vertente racional, não é peça para só ver uma vez. Estou certo de lá ir mais uma ou duas vezes e não só voltar a render-me à excelência da obra (pictórica em tantos instantes, que apeteceria reter como quadros a conservar!), mas também ver e sentir o que agora inevitavelmente me passou ao lado.
E depois, mesmo não conseguindo abarcar tudo quanto aqui se nos propõe, fica-se ansioso pelo que virão propor-nos o «Purgatório» e o «Paraíso», projetos que se seguirão...
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