quarta-feira, maio 17, 2017

(DIM) “A Parte dos Anjos”, de Ken Loach

No mundo dos produtores de whisky a «parte dos anjos» é a que se evapora de um ano para o outro. Será, pois, a componente da riqueza, que nunca caberá a quem a cria, porque inevitavelmente perdida por circunstâncias naturais.
É essa parte dos anjos, que Robbie e os três cúmplices reivindicam, quando se decidem apossar do conteúdo de um barril com um vinho suficientemente raro para ser leiloado por mais de um milhão de libras. Incapazes de conseguirem rendimento lícito numa sociedade, que os marginaliza por serem quase analfabetos e terem nos rostos as cicatrizes do passado delinquente, só lhes resta um golpe genial a partir do qual possam iniciar o caminho da redenção. Porque a alternativa seria manterem-se aprisionados num círculo que nunca encontrariam forma de romper.
Realizado em 2012 deveria ser um dos derradeiros títulos de Ken Loach, que chegou a anunciar a opção pela reforma, invocando a condição octogenária. Mas, entretanto, uma estória se lhe impôs como incontornável e ei-lo a regressar no ano transato com o inesquecível «Eu, Daniel Blake».
Muito embora tenha todas as qualidades dos habituais filmes do realizador, nomeadamente a solidariedade entre os mais desfavorecidos, pode-se considerar que, há cinco anos, Loach parecia esgotado: comparecia-se aos seus filmes por militância, mas vinha-se de lá com a sensação de ter sido mais do mesmo.
Essa sensação de impasse convenceu Loach da incapacidade de acrescentar algo de novo a tudo quanto exprimira em todos os seus filmes anteriores. Afinal, essa mera hipótese terá sido excelente como estímulo criativo, porque o inesquecível combate de um pobre carpinteiro para contrariar o labirinto burocrático em que se sentiu agrilhoado, veio recolocar na ordem do dia a estratégia desumana concebida pelo neoliberalismo para silenciar, até mesmo eliminar, quem deixou de ter valor produtivo para a máquina de enriquecimento dos detentores do capital.
Neste «A Parte dos Anjos» Loach quer demonstrar a injustiça de inexistirem mecanismos sociais, que possibilitem a recuperação de quem cedo caiu na delinquência. E preza-se a importância da amizade, porque o percurso de Robbie a caminho da redenção não se verificaria se não se conjugassem duas circunstâncias: ter-lhe nascido um filho e contar com a amizade de um homem bom, que acredita nas suas capacidades e tudo lhe ensina sobre a produção e apreciação de um bom whisky.
Loach não deixa, igualmente, de demonstrar como o valor das mercadorias acaba por ser falacioso, porque o vencedor do leilão - um burgesso endinheirado do Connecticut - experimenta a sua compra sem compreender que o verdadeiro produto fora substituído no barril por um outro vinho banalíssimo. E há, igualmente, a presença de quem comercializa mercadorias e está disposto a métodos fraudulentos tão só consiga garantir a maximização dos lucros. Acaba por ser quem tal simboliza quem acaba por adquirir a bom preço as garrafas, que Robbie lhe irá entregar.
Acresce que, sem ser filme para rir às gargalhadas, «A Parte dos Anjos» tem uma ironia a percorrê-lo, que prepara o espectador para o final em que é total a empatia com quem roubou e enganou, mas conseguiu partir com a companheira e com o bebé de ambos para um novo início em sítio onde as amarras se revelem mais deslaçadas.

 

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