Já levo bastante mais de meio século como espectador espantado. A primeira vez terá sido, quando uma vizinha, a Eva, me levou ao cinema do Porto Brandão para ver a «Gata Borralheira». Eu, que me habituara a ver as imagens a preto e branco dos televisores acumulados na sala onde o meu pai as ia reparando, surpreendi-me com o gigantismo do ecrã e as cores exuberantes com que os estúdios da Disney encantavam os miúdos desse mundo do pós guerra.
Outro deslumbramento aconteceu com o Menino Selvagem do Truffaut visto no Estúdio 444 da Avenida Defensores de Chaves. Mais do que a história de Victor e do doutor Itard, que o tratava de normalizar para os padrões da sociedade do início do século XIX, fiquei rendido à música de Vivaldi. Eu que andava embrenhado nas sonoridades dos Beatles, dos Doors ou dos Crosby, Stills, Nash & Young começava a despertar para a riqueza da música clássica.
Já a fogueira da Revolução de Abril se reduzira a cinzas fumegantes, quando passei por comprometedora vergonha na sala do Nimas. O filme era o «Nevoeiro» do John Carpenter, que julgava ver com o distanciamento próprio de quem sabe tudo tratar-se de uma efabulação para entretenimento de quem o via. E, no entanto, aconteceu a cena em que, do farol, a Adrienne Barbeau vê a própria casa a ficar envolta em nevoeiro e teme pela segurança do filho, que ali deixara entregue à avó. Batem à porta, a velha senhora abre-a, recua porque o neto lhe diz qualquer coisa e nós sabemos que uma das criaturas do Além dali surgirá para a matar. Entusiasmado, terei soltado um grito só contido porque, a minha mulher cuidou de me acotovelar trazendo-me de volta à sala do cinema.
Se tenho por norma ver todos os genéricos até ao fim, dessa vez, e por razão maior, deixei-me ficar na sala escura até ao fim enquanto toda a gente saía. Manifestamente não queria ser apontado a dedo como o tipo que se entusiasmara demasiado com quanto vira no ecrã...
E, no entanto, três anos antes, olhara com complacente superioridade para um fogueiro que comigo trabalhava a bordo do navio »Gerês», quando, uma noite, fomos ao cinema de Matosinhos onde se exibia «A Guerra das Estrelas», então acabado de estrear. Na altura éramos uns quatro ou cinco tripulantes da Casa das Máquinas, que desistimos de tentar refrear o Gaspar (era assim que se chamava) de ir acompanhando o filme com expressões entusiasmadas do género «olha o gajo atrás de ti!», «tem cuidado que eles podem estar atrás da porta!», etc.
Estava aqui demonstrada a diferença entre cinéfilo e fã de cinema, tal qual o Edgar Pêra equaciona num dos seus filmes de 2016: exatamente «O Espectador Espantado». No filme do Carpenter eu fora o fã, que saíra da cadeira e entrara a pés juntos na estória revelada na tela, enquanto no do Lucas posicionara-me como cinéfilo a arrogar-me de atitude majestática para com os tontos, que viviam na trama como se nela participassem.
A proposta cinematográfica de Edgar Pêra é notável como quase sempre: visualmente atrativa com sobreposição de imagens num ritmo acelerado, que não exclui o slow motion e com uma sucessiva formulação de dúvidas e de convicções sobre o ato de ver um filme. Algo que nos inquieta, maravilha, assusta, informa, comove e sei lá que tantas outras emoções nos suscita. Mas também algo - e esse é dos poucos aspetos de que o filme passa ao lado - que nos pode condicionar para sermos diferentes de quem ambicionamos ser, porque dificilmente escapamos às mensagens subliminares e aos valores contrários aos nossos interesses de classe, que os produtores pretendem inculcar.
O que muito me agrada em Edgar Pêra como autor é o tratar-nos como pessoas inteligentes dispostas a sabotar-nos os cânones cristalizados, desafiando-nos para equacionarmos modelos de análise da realidade completamente distintos dos mais vulgarmente utilizados.
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