Por coincidência concluí a leitura de «O Evangelho segundo Lázaro» de Richard Zimler, depois do circo mediático ter tomado Fátima por palco a pretexto da visita do Papa e em vésperas da inauguração da nova exposição do Museu Nacional de Arte Antiga dedicada à representação da Virgem Maria na arte ocidental desde o Renascimento.
O romance em causa tem muitos motivos que o recomendem, mormente o talento de Zimler na criação de um estilo acessível, sem concessões. Vale sobretudo pelo trabalho de historiador, que nos dá a conhecer as circunstâncias em que Yeshua/ Jesus foi martirizado no Gol Goatha, e como logo se iniciou o processo de lhe desvirtuar os ensinamentos.
Entre o catolicismo tal qual foram sendo criados os cânones ao longo dos sucessivos Concílios e as intenções do seu inspirador as coincidências são quase nulas. Este modelo monoteísta foi elaborado durante muitos séculos de acordo com os interesses dos seus chefes religiosos, que encontraram forma de enriquecer, influenciar ilegitimamente as decisões do poder político e mandar assassinar, torturar ou ostracizar quem com ele colidia.
O que Zimler propõe é o relato de Lazar, um companheiro de Yeshua desde a infância, apostado em transmitir ao neto, Yaphiel, o verdadeiro conteúdo da sua mensagem teológica. Para que, contra todos quantos apostassem na sua deturpação, subsistisse quem conhecesse e divulgasse essa Verdade.
Não admira que uma das mentiras mais antigas tivesse a ver com a supostamente virgindade de Miriam/ Maria, quando engravidou do seu mais famoso rebento. Havendo registos de irmãos mais velhos, como foi possível sustentar essa suposta condição da mãe de Yeshua/ Jesus? Como o próprio Lazar diz a um desses mistificadores até uma criança tem mais sensatez do que os divulgadores de tal falácia.
A História ensina-nos que, quase ausente da Bíblia, só a partir do século V começaram a surgir escritos apócrifos a publicitarem tais trapaças. Com sucesso garantido, porque um culto dedicado a entidades tão etéreas como o Pai, o Filho e o Espírito Santo não consegue o tipo de afinidade garantida pela existência de uma mãe tragicamente órfã de quem gerou. Numa época de guerras, de epidemias e de outras aleatórias causas de mortandade, quantas mulheres terão encontrado nas igrejas a catarse possível para a improvável cura dos seus sofrimentos?
Hoje em dia a religião costuma ser assunto mais do interesse feminino do que masculino, já que aos homens são confiados os temas de maior proximidade com os belicismos do passado - daí o fanatismo com que chegam a viver os eventos desportivos!
Mas essa lenta progressão na importância dos cultos marianos um pouco por toda a Europa explica que os quadros a serem exibidos nas salas das Janelas Verdes mostrem uma Europa durante séculos apostada em dar primazia a essa personagem recriada, subestimando os que lhe seriam hierarquicamente superiores.
Compreende-se o incómodo de Francisco ao vir a Fátima legitimar o que sabe ser um absurdo logro. Para a sua lógica racional de jesuíta nem a Virgem apareceu onde quer que fosse, nem os pastorinhos estariam habilitados para prodigalizarem milagres ou fazerem-se mensageiros de orientações anticomunistas. Cumpriu o seu papel, mesmo alertando contra o comércio dos favores exigidos aos poderes de que se diz representante na Terra. Mas quem queria ouvir-lhe o que tinha realmente a dizer? Quem se abstraiu do egoísmo de se ver «lavado dos seus pecados» ou candidato à lotaria dos milagres, e compreender a importância de se alcançar mais justiça e paz entre os desavindos homens?
É por isso mesmo que o romance de Zimler é de pertinente atualidade: porque concebido a partir de uma séria investigação histórica, apresenta Yeshua /Jesus como ele provavelmente foi: um inteligente ativista, que detestava a soberba dos sacerdotes do Templo e a opressão dos ocupantes romanos utilizando o seu profundo conhecimento da Tora para instigar os seguidores a empreenderem outro caminho...
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