quinta-feira, maio 04, 2017

(DIM) Como Hitchcock respondeu ao maniqueísmo dos filmes de espionagem da década de 60

Quando logo à noite a «Cortina Rasgada» de Alfred Hitchcock iniciar, no Cineclube Gandaia, o ciclo de cinema dedicado às obras crepusculares do realizador, iremos estar confrontados com a forma inteligente como ele se distancia da postura maniqueísta tão vulgar nos filmes de espionagem dessa década de 60.
Basta lembrar os filmes de 007:  neles vemos uma clara separação entre os bons - James Bond e os amigos, nomeadamente o agente da CIA Felix Leiter - e os maus, todos eles associáveis à temível organização Spectre, que não inocentemente agrega europeus orientais, chineses e outros de traços fisionómicos de etnias contrárias à caucasiana  figura do protagonista.
Será resposta nunca encontrada o saber-se como o mestre Hitchcock teria cuidado desse tipo de estória, ele que chegou a ser considerado como o cineasta mais desejado para rodar o primeiro título da série.
Em «Cortina Rasgada» esse maniqueísmo primário dilui-se: o Prof. Michael Armstrong, interpretado por Paul Newman,  é antipático durante todo o filme, enganando a namorada,  utilizando a manha para roubar a fórmula pretendida ao cientista da Alemanha de Leste e nem sequer sendo capaz de matar por si mesmo o agente, que o persegue, valendo-lhe a ajuda da mulher do lavrador, que lhe servira de agente de ligação.
Para Hitchcock o mundo da espionagem não é facilmente caracterizado pela diferença entre heróis e bandidos: de um e outro lado funciona a falta de escrúpulos e nada tendo do glamour do martini dry ou das engenhocas tecnológicas.
Se os filmes de James Bond têm um colorido diversificado, no de Hitchcock o
diretor de fotografia (John Warren) foi instado a recorrer a filtros para atenuar as cores, ao mesmo tempo que incidia os projetores  sobre as superfícies brancas a fim de suscitar um efeito de diluição da luz. Mergulhamos assim numa atmosfera pesada, que reflete os cenários com maior realismo e acentua a crueza da estória.
É esta preocupação com o detalhe, que caracteriza o cineasta, mesmo num título, por que não manifestara grande entusiasmo. Essa obsessão atingia tal dimensão, que ele mesmo fez a viagem até Berlim Oriental para conferir se os horários dos voos coincidiam de facto com os considerados no argumento.
Uma referência final para outra das cenas memoráveis do filme, que se devem acrescentar às já referenciadas no texto anterior: aquela em que, prestes a ser apanhado num teatro chinês, o protagonista causa o pânico na assistência ao gritar «Fogo», podendo assim escapar-se dali com a noiva.
Reitera-se, pois, a ideia de, não sendo um dos seus filmes de excelência, «Cortina Roubada» constitua um agradável entretenimento para darmos início à revisitação da obra do Mestre.
Com um desafio adicional para os espectadores: sabendo-se que Hitchcock gostava de com eles brincar aparecendo por breves segundos numa das cenas de cada filme, há sempre a tentação de olhar atentamente todos os pormenores para, enfim, o identificar. Obviamente que «Cortina Rasgada» também conta com esse curto instante...

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