Todos os meses a Associação Gandaia da Costa da Caparica tem uma sessão com um escritor a quem é solicitada a possibilidade de se desvendar aos leitores, apresentando-lhes os seus livros.
Nesta noite de quinta-feira a autora convidada pelo António Fonseca, o responsável por esta iniciativa, é Cristina de Carvalho, cuja obra vasta, vida bem preenchida e feitio generoso promete garantir um par e horas bem passadas. Como dizia o João Brites, encenador do Bando, a propósito da peça, que tem agora em cena no Teatro D.Maria II, existem experiências únicas logo inseríveis no nosso património vivencial. A minha expetativa é que a desta noite constitua uma dessas oportunidades.
Não dou particular importância ao facto de Cristina de Carvalho ser filha de relevantes escritores. A experiência ensina-nos, que o talento literário não se herda, cultiva-se. E ela assim o fez desde muito cedo, porque foi muito protegida na infância, só aos oito anos tendo convívio com outras crianças como ela. Até lá fez da solidão uma oportunidade para exercitar a imaginação, sobretudo no jardim em que se identificava com o lado mais encantatório da Natureza.
Em adulta o apaixonar-se enriqueceu-lhe o conhecimento depois espelhado na tradução das emoções em palavras. Numa entrevista ela confessava ter sido esse o melhor sentimento, que alguma vez experimentou: “Vertiginoso. A pessoa faz tudo. É uma coisa…! É pena ser tão rápido. Desfaz-se. A paixão está para o Homem como outros fenómenos intensos e breves estão para a natureza. É como a aurora boreal ou o trovão ou o relâmpago. Assim é a paixão. Intensa e ocasional.”
A vida profissional possibilitou-lhe as viagens, a descoberta de outros espaços e de como neles ia encontrando as suas próprias singularidades.
A primeira vez que a li foi quando me chegou às mãos a estória de Elvis e de Agnetta, que iam de Kiruna a Estocolmo à procura dos mistérios do mar e maravilhar-se com o navio imponente, mandado construir pelo rei: esse «Vasa» que, na sua viagem inaugural, em 1628, afundou-se à vista de quantos o estavam a festejar em terra.
Depois desse «O Gato de Uppsala», li-lhe «Ana de Londres» e encontrei na protagonista uma gémea de uma colega de liceu, também ela levada a emigrar por razões políticas e amorosas, e vítima do egoísmo e irresponsabilidade de quem julgara ser o grande amor da sua vida.
Algo que me identifica com a escritora é a sedução por essa hora, que os francesas dizem ser entre cão e lobo e para a qual a língua portuguesa tem uma expressão lindíssima: o lusco fusco. Que também serviu de título a um dos seus livros. Aquele em que considera ser essa a altura para melhor vislumbrar o que nos rodeia: “Os contornos em que essa meia luz revela subtilezas. Algo que não se vê nem de dia nem de noite. Ou então, a aurora. Nada se vê bem nos extremos. A noite encobre e a luz cega. Essas transições são o melhor momento para vermos realmente. Daí ter dito isso. É uma convicção.”
Agora que a idade vai avançando é curiosa a sua maneira desprendida de se julgar menos sábia do que os mais jovens: “No dia-a-dia um jovem se for interessado e atento, sabe mais do que uma pessoa de idade. Os mais velhos têm outro tipo de conhecimentos. Cautelas, avisos, perceções, intuições. Sabedoria de vida. Eu chamo-lhe cautelas.
Conhecimento é algo que aplicamos no quotidiano, o que conhecemos, o que aprendemos todos os dias e o que todos os dias vamos aclarando. A forma de o usar e de aplicar esse conhecimento é uma coisa diferente. São as tortuosidades que se aprendem com o envelhecimento.
A velhice é um truque. Aprendemos os truques da vida. E não seguimos por aqui ou por ali, porque já sabemos como é.”
Eu, igualmente sessentão, não sei se me atrevo a concordar com ela. Mantenho a esperança de ter no tal património vivencial, a que no início aludia, uma cultura que compense o quanto me sinto às vezes ultrapassado pelo acelerado desfile dos acontecimentos. Mas esse é um bom tema para logo colocar à discussão com quem compareça no Auditório do C. C. Pescador.
Decerto que essa é outras questões propiciarão um debate estimulante...
Sem comentários:
Enviar um comentário