Em 1757, quando Pietro Longhi criou «O Charlatão», Veneza já perdera a importância económica, que detera, quando centralizava uma boa parte do comércio marítimo do Mediterrâneo. Perdera, igualmente, os territórios sobre que impunha o seu poderio e cingia-se à pequenez da sua cidade implantada na laguna. Meio século depois até invadida se veria pelos exércitos de Napoleão.
Os aristocratas, que tinham sido grandes mecenas, já não conseguiam alimentar o volume de encomendas, que tinham tornado pujante a arte veneziana dos séculos anteriores e os artistas sentiam essas crescentes dificuldades. Quadros de menores dimensões como o que aqui está em causa (60 x 50 cm) tornaram-se comuns substituindo os que tinham primado por dimensões mais substantivas.
Este «Charlatão», que integra a exposição sobre «Veneza em festa de Tiepolo a Guardi», atualmente a decorrer no Museu Cognacq-Jay em Paris só em aparência é banal, porque integra um conjunto de códigos, cuja decifração poderá enriquecer a sua leitura.
Olhando para a tela vemos um charlatão em cima de um estrado, por certo a elogiar as virtudes do seu produto, um elixir porventura capaz de dar vigor aos amantes, energia aos mais velhos e crescimento acelerado aos mais novos.
Uma criança olha precisamente para o trapaceiro com avidez, a exemplo das três cortesãs interessadas no produto, enquanto um casal mascarado parece indiferente ao anúncio e vive um jogo de sedução com o homem a levantar a saia da companheira com concupiscência.
Num nível superior uma marionete de Arlequim sinaliza a época festiva. E debaixo do estrado um cão descansa, indiferente a tudo quanto se passa à volta.
Mas podemos começar por questionar essa leitura imediata: quem será aqui o charlatão? O vendedor, o sedutor, quiçá o próprio pintor?
É que este coloca um quadro ao fundo a prefigurar a possibilidade de ter encenado este tema no próprio atelier. Mas a perturbar esta hipótese surge ao lado uma coluna, que poderia bem ser uma das que integram o Palácio dos Doges. Ora este último era a sede de um poder perdido, que o próprio Longhi personificara num outro seu quadro célebre - o de um rinoceronte com o corno decepado como metáfora de quem fora poderoso e se vira amputado na sua condição de animal domesticado.
O próprio ambiente sugerido pelos personagens não é de alegria como deveria acontecer durante o Festival. Existe uma melancolia, que poderá evocar essa decadência, que só o crescente interesse da cidade pelos primeiros turistas europeus poderia em parte debelar. Daí a importância das festividades mais importantes no calendário veneziano: seriam elas a suscitar um interesse de visitantes, que os tempos só tenderiam a aumentar até à presente condição de verdadeiro parque de atrações.
Outro interesse do quadro tem a ver como Longhi o concebeu, com uma linha diagonal, que passa pela mão do personagem em cima do estrado e se liga à da mão «marota» do sedutor. Esse artifício, muito comum nos pintores da época, tende a facilitar a leitura do motivo representado na pintura, manipulando o inconsciente do espectador, forçando-o a percorrer o olhar de acordo com a intenção prévia do artista. Existe igualmente a curiosidade de termos todos os personagens fixados uns nos outros ou em nós: as cortesãs e o miúdo atentam no vendedor, o par cruza entre si os furtivos olhares e nós próprios não escapamos à atenção de quem nos observa - não só o charlatão, mas também o cão, que descansa por baixo do estrado.
Não se tratando de uma grande obra, esta proposta de Longhi demonstra como, mesmo naquele tipo de quadros que costumamos passar pelas salas dos museus, quase perante eles nos determos por estarmos interessados nos mais famosos ou vistosos, são afinal passíveis de nos porem a refletir quanto ao tipo de informações neles contidas.
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