Faltam dois meses para que, nas livrarias britânicas, surja o novo ensaio de Patrick West intitulado «Get Over Yourself: Nietzsche for Our Times». No entretanto ele vai-nos propiciando alguns dos seus tópicos principais, mormente num artigo recém-publicado no número de abril da revista «Spiked».
O que defende West? Para ele, ao morrer em 1900, Friedrich Nietzsche não podia imaginar que se lhe atribuiriam as culpas por três das maiores tragédias do século, que estava prestes a começar: as duas Guerras Mundiais e o relativismo, que tem sido pasto fácil para as demagogias dos defensores da pós-verdade.
Segundo essa inculpação, a Primeira Guerra teria explicação fácil na influência dos textos inflamados do filósofo nos jovens e, sobretudo, nos insatisfeitos militares alemães do seu tempo.
A Segunda Guerra explicar-se-ia pelo conceito de Übermenchen (Superhomens), que esmagariam os decadentes e os fracos. Os nazis apropriaram-se desta tese, sem levarem em conta o quanto o filósofo detestava o nacionalismo alemão e, especialmente, os antissemitas em quem detetava um abjeto ressentimento.
O relativismo da verdade resultou da recuperação das suas ideias pelo filósofo francês Michel Foucault, segundo o qual o conceito decorreria de um desejo de poder e não teria qualquer fundamento eterno. Em 1973, numa célebre conferência, a respeito da possibilidade de existirem verdades absolutas, ele proferia: “ Esse mito tem de ser dissipado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir, mostrando (…) que, por trás de todo o conhecimento e sua obtenção, está em causa a luta pelo poder. O poder político não é alheio ao conhecimento, interage com ele.”.
Embora Foucault rejeitasse por certo a ulterior perversão dos seus propósitos pelos ideólogos das várias direitas, incluindo as mais extremistas, não faltaram oportunistas a valerem-se dessa interpretação para relativizarem todos os conceitos e misturarem-nos numa caldeirada, que culminou na disseminação presente das «fake news».
Para Patrick West justifica-se a recuperação do filósofo alemão pelos herdeiros do Iluminismo, dissociando-o da condição de precursor do estéril relativismo pós-moderno. É que, no entusiasmo com que procuram erradicar o discurso marxista, havia quem a ele recorresse como mais útil na critica ao liberalismo económico do que socorrer-se dos argumentos do autor de «O Capital».
Há que reconhecer que, em 1878, no seu ensaio «Humano, Demasiado Humano» Nietzsche afirmou taxativamente a não existência de factos eternos, nem verdades absolutas. Mas não deixava de considerar imperiosa a reflexão rigorosa, sintética, fria e simples, contrariando a tentação das emoções e da taciturnidade. O que o associava às preocupações de quantos apostavam na primazia do pensamento racional, aproximando-o - no método, que não nas ideias - da escola marxista.
Nietzsche filiou-se nas preocupações de Voltaire em combater as superstições, os dogmas religiosos, as lendas e boatos, que tanto haviam dado matéria de exaltação ao pessimismo dos principais vultos do romantismo, inspirados em Jean Jacques Rousseau.
Respeitando os pressupostos do pensamento científico - e aí se volta a assemelhar com as preocupações marxistas em dar um cunho científico às suas análises e conclusões, Nietzsche acreditava que as verdades deveriam ser obtidas pelo esforço e ser descartadas tão só se vissem solidamente refutadas ou comprovassem a sua obsolescência.
Há aqui, igualmente, alguma similitude com a Dialética hegeliana, que poria continuamente duas possibilidades a contradizerem-se, com uma a prevalecer sobre a outra, mas logo abrindo campo para novas antíteses.
Em 1881, no ensaio «Aurora: Reflexões sobre Preconceitos Morais», afirma: “Cada pequeno passo na direção do pensamento livre sempre foi conseguido à custa de torturas espirituais e físicas. A mudança exigiu inumeráveis mártires e enormes custos, até alcançarmos a mitigada razão humana e sensação de liberdade, que fundamentam o nosso orgulho”.
Nietzsche acreditava que deveríamos merecer as verdades que alcançássemos, aceitando que elas nos parecessem intoleráveis e inaceitáveis, quando a evidência no-las demonstrasem como tal.
Walter Kaufmann, que apostou na reabilitação do filósofo depois da Segunda Guerra Mundial, defendeu que, para ele, “o homem poderoso é o homem racional que até submete a mais íntima fé ao severo escrutínio da razão e está preparado para desistir das suas certezas se não suportarem o mais exigente teste. Abandona o que mais ama, se a racionalidade assim lho exigir. Não cede às suas inclinações e impulsos.”
A tese segundo a qual não existem verdades eternas, não significa que todas elas se equivalem, porque acabarão, mais tarde ou mais cedo, substituídas por outras. Bem gostariam os que pugnam pelo fim das ideologias, para que assim fosse, mas elas estão bem presentes na nossa realidade, desempenhando papel ativíssimo na sempiterna luta de classes.
A expressão em causa é inteiramente coerente com a abordagem de Popper: devemo-nos cingir às verdades de hoje até que novas evidências apareçam a provar o contrário. Copérnico tinha alcançado a verdade da sua época até Galileu propor outra melhor. A física de Newton estava correta até que Einstein a viesse reformular. E é indubitável a convicção de a Ciência de amanhã vir a refutar o que hoje aceita como verdadeiro.
É neste pressuposto que os marxistas trabalham: identificando o seu pensamento tanto quanto possível com os métodos científicos, adotam os principais eixos do pensamento do seu inspirador enquanto eles não se revelarem passíveis de se verem substituídos por outros mais válidos.
Bem gostariam os seus opositores, que tais ideias fossem dadas como ultrapassadas, porque as classes sociais dominantes já não se podem resumir à burguesia e ao proletariado. Mas o corpo ideológico diz respeito à oposição dialética entre explorados e exploradores, pelo que pode e deve ser adaptada à definição de quem são uns e outros a cada momento.
E quanto ao argumento dos muitos crimes praticados ao longo do século XX em nome do Socialismo, vale a pena lembrar que é a própria Ciência, que obriga a muitas experiências, a maior parte delas falhadas, até chegar à descoberta inovadora, que tudo alterará.
Por isso bem podem os detratores do marxismo invocar o estalinismo, o maoísmo, o castrismo ou o chavismo como argumentos para o pretenderem silenciar, que não o conseguirão: mesmo com avanços e recuos, existe uma tendência evolutiva da ciência, que as próprias sociedades refletirão na forma como se organizam e governam.
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