Teriam bastado os seus quadros sobre o aborto ou o de Salazar a vomitar a pátria para ter por Paula Rego uma rendida admiração. Ainda que, se pudesse escolher uma das suas obras para a minha personalíssima pinacoteca, optaria pelo «Baile».
Quando se anunciou o filme de Nick Willing sobre a mãe fiquei na dúvida se me interessaria vê-lo: é que já foram tantas as entrevistas com a artista e tão redundantes os comentários e críticas à obra, que se me colocou a possibilidade de nada de novo vir a conhecer.
Engano meu, e ainda bem, porque «Paula Rego, Histórias e Segredos» é um excelente documentário em que a artista explica o que a move no trabalho ao mesmo tempo, que o desfiar da sua biografia permite compreender melhor os seus temas obsessivos e alguns detalhes menos evidentes nas suas obras.
Há o retrato impressionante do que era ser mulher no tempo do fascismo, explicitando-se o admirável conselho do pai a instá-la a daqui zarpar para escapar à condenação da subserviência com que as mães e as avós se tinham conformado. Para quem ainda tem alguma mirífica admiração pelo ditador de Santa Comba o testemunho de Paula Rego é mais um a acrescentar-se ao rosário de testemunhos sobre o ambiente sinistro de privação das liberdades e de imposição de preconceitos ditado pelo regime.
Curiosa a abordagem do que era Londres na segunda metade dos anos 50, quando a artista se matriculou na Slade. O ambiente de boémia era o oposto de tudo quanto ela conhecera até então no cantinho natal. E Victor Willing tornar-se-á no grande esteio afetivo da sua vida não só pela beleza e inteligência, mas porque integrava o pequeno núcleo de artistas (Bacon, Lucien Freud), que ditava os rumos para onde a criatividade pictórica os tenderia a conduzir nas décadas subsequentes.
O filme não escamoteia as grandes dificuldades financeiras por que passou a família da pintora nos anos sessenta e setenta, só vindo a conquistar o desafogo com a determinante exposição na Serpentine Gallery em 1988, muito embora o milionário Saatchi já estivesse a comprar muitos dos seus quadros. Foi também esse o ano em que, na sequência da esclerose múltipla, Victor Willing morre, propiciando à viúva uma emancipação artística sem precedentes. Os melhores quadros serão os dos anos seguintes, quando surge a série da Mulher Cão e Jorge Sampaio desafia-a para criar os painéis da capela do Palácio de Belém.
Recorrendo a um riquíssimo acervo de filmes familiares, Nick Willing construiu a obra definitiva sobre a artista. Porque não é daquelas que se esgote numa, duas, cinco ou dez visualizações. Há nela tanta riqueza quanto ao que é a arte e o que ela pode significar como libertação, interrogação ou mera catarse de quem a faz, que saí do cinema decidido a comprar o DVD tão só ele fique disponível. Porque é daquelas propostas para ir vendo sem pressas e tão amiudadas vezes quantas as possíveis.
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