Quase a acabar o ano de 1953, Garcia Marquez escreveu um conto num impulso, que o fez ir de fio a pavio no mesmo fôlego: «Um Dia depois de sábado» é a história de um fenómeno insólito passado numa vila onde o calor mata inúmeros pássaros.
Como sucederia com toda a sua obra posterior, logo no primeiro parágrafo, é-nos prodigalizado um conjunto de informações importantes para entrarmos facilmente no que se seguirá:
“A inquietação começou em julho, quando Rebeca, uma viúva amarga, que vivia numa mansão enorme com dois corredores e nove quartos, descobriu os vidros das janelas partidos como se os tivessem apedrejado da rua. Começou por constatar a ocorrência no seu próprio quarto e pensou chamar a criada Argénida, também sua confidente desde a morte do esposo. Foi depois de apanhar os cacos - e durante um bom bocado não fez senão isso! - que viu ter acontecido o mesmo com as demais janelas da mansão.
A viúva tinha um sentido muito forte da autoridade, herdado talvez do bisavô paterno, um crioulo que combatera ao lado dos monárquicos durante a Guerra da Independência e encetara depois uma penosa viagem a Espanha para visitar o palácio mandado construir por Carlos III em San Ildefonso.
Foi ao constatar o estado das outras janelas, que esqueceu a intenção de apelar a Argénida , pegando no chapéu para se dirigir à Câmara e queixar-se do atentado. Mas, ao chegar ali, deu com o presidente em tronco nu, peludo e com uma solidez que lhe pareceu bestial, a reparar as janelas do edifício, tão danificadas como as suas.”
No ano seguinte decidiu apresenta-lo num concurso organizado pela Associação Nacional de Escritores e Artistas Colombianos.
A 30 de julho de 1954 o júri atribuiu-lhe o primeiro prémio de entre os 46 textos em competição. Seria a sua primeira de entre muitas consagrações, que receberia ao longo do percurso literário. E a Editora Minerva de Bogotá logo o incluiria num livro intitulado «Três Contos Colombianos», que associava o dele ao dos autores, que tinham recebido o segundo e o terceiro prémio: Guillermo Ruiz Rivas e Carlos Arturo Truque.
No seguimento da estória a viúva não consegue que o autarca lhe aceite a queixa, porque, segundo ele lhe conta, as casas da vila andam há três dias a serem invadidas por pássaros moribundos. Explicava-se, assim, que, no escritório da câmara, tivesse visto acumulados tantos pássaros mortos.
“Quando abandonou o edifício, Rebeca sentia-se envergonhada. Mas também algo ressentida com Argénida, que lhe levava todos os boatos da terra e lhe tinha escamoteado essa informação. Abriu a sombrinha, encadeada pelo brilho do iminente agosto e, enquanto palmilhava a rua escaldante e deserta, teve a impressão de que todas as casas exalavam um forte e penetrante cheiro a pássaros mortos.”
Antonio Isabel del Santísimo Sacramento del Altar Castañeda y Montero, o nonagenário padre da igreja local, fora dos primeiros a dar com dois pássaros mortos: o primeiro na terça-feira na sacristia, o outro no dia seguinte na residência paroquial. Apesar de afiançar já ter visto o diabo por três vezes, ele atribuiu aos gatos a razão de ser dos seus achados. E pensou que, num mundo perfeito, os gatos não deveriam existir.
No dia seguinte deu com outro pássaro morto na estação ferroviária e a convicção quanto à causa vacilou. Percebeu que algo de estranho se estava a passar com os pássaros, mas considerou o assunto pouco importante para que justificasse um sermão.
No próximo texto iremos continuar a abordar o talento com que Gabriel Garcia Marquez, neste seu primeiro texto premiado, desenvolve a intriga.
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