Rosa Montero diz que passamos a vida a mentirmo-nos: aquilo que hoje recordamos da infância é diferente do que dela resgataremos daqui a vinte anos. Se temos irmãos, aquilo que partilhámos é diferente na versão de uns ou de outros. No fundo inventamo-nos a nós mesmos, porque a identidade do que somos é a da biografia tal qual a vamos reconstruindo. Seletiva, recalcando o que nos comprometeu ou fez sofrer, empolando o quanto nela nos causou momentâneo orgulho. No fundo somos escritores de um romance, que nos tem por protagonistas, convidando-nos toda a vida a escrevê-lo, a reescrevê-lo. E se esse contínuo labor é o que há de mais aproximado à descoberta da paixão, acrescida da vantagem de dispensar a outra pessoa, pode concluir-se o quão narcísico é o ofício do escritor.
Reconhece-o a autora espanhola: se quando vivemos o deslumbramento da paixão temos o ser amado incrustado em obsessão do nosso pensar, acordando e adormecendo sempre no mesmo cogitar, a criação de um romance mergulha o autor na mesma alienação. Num e noutro caso anseia-se pelo prodígio, pelo êxtase da perfeição. Mesmo que o saibamos inacessível.
Os árabes costumavam negar a simetria absoluta dos seus palácios com algo de imperfeito para não ofenderem deus, o único a quem esse inatingível se fazia tangível. Estulta precaução, porque o que hoje nos agrada, amanhã será visto como limitado. Não é por acaso que João de Melo ande a reescrever os seus romances, outrora incensados e merecedores de teses de doutoramento. A lucidez do crepúsculo ter-lhe-á dado consciência do quanto lhe falhara na excessiva claridade dos anos pretéritos. Se estamos fadados para escrever contra a morte, a reescrita vem, afinal, como o corolário do que se quis viver e se não viveu.
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