Este filme de Buñuel leva-me de regresso ao passado, quando recordo um dos filmes, que mais me marcaram no início da adolescência: O Menino Selvagem de François Truffaut. Para além do filme em si, que hei-de abordar quando puder revê-lo, há a evocação da sala, a do Estúdio 444 na Avenida Defensores de Chaves, uma das que as décadas seguintes se incumbiram de só perdurarem na memória de quantos nelas viram bons filmes.
Lembra-me a folha de sala da Cinemateca, que nela se estreou este filme de Buñuel doze anos depois de produzido no México, onde cumpria a sua primeira fase criativa ali propiciada por um exílio concluído em 1960 quando, sob fortes críticas dos republicanos, regressou à Espanha franquista para rodar Viridiana.
Tratando-se de uma abordagem do crime em que incluiria todas as suas conhecidas obsessões tem, logo nos primeiros minutos, uma cena perturbora, mas tipicamente bunuelina: um miúdo vê a detestada precetora aproximar-se da janela para espreitar a Revolução em curso lá fora e, ao mesmo tempo que manuseia uma caixa de música, ela é mortalmente atingida por uma bala perdida vinda lá de fora. O sorriso que se desenha nos lábios não é propriamente causado pela bala, que lhe abrira um buraco no pescoço, mas por quanto surpreende das coxas desnudadas onde têm particular relevância as ligas a que se prendem as meias. O fetichismo, que tem presença na extensa filmografia do realizador, colhe desse instante um exemplo antológico.
Archibaldo, assim se chama o miúdo, irá crescer, sempre condicionado pelos estímulos suscitados pela música da tal caixa e por mulheres, que replicam de alguma forma a figura materna cujo distanciamento tanto o afetara. As intenções homicidas apossam-se dele com uma falta de controle, que o levam até à quase execução. Mas, singularmente, essas mortes acabam por acontecer devido a acidentes, que não pela efetiva concretização de quem tanto as desejara.
A questão sobre quem será mais culpado, se quem desejou o ato, se quem acabou por suscitá-lo, complementa-se pela frustração de Archibaldo, que quer ser punido por essas fantasias e não consegue. O polícia manda-o embora da esquadra com o veredito: se fossemos prender todas as pessoas que desejaram matar, num momento ou noutro, o mundo era uma prisão!
Chega-se assim ao happy end, que os críticos julgaram tratar-se de concessão de Buñuel à vontade dos produtores ou dos censores. Mas, em entrevistas, ele negava essa rendição: na forma equívoca como se concluía, o filme causava mais interrogações do que certezas sobre a efetiva identidade do protagonista.
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