segunda-feira, setembro 14, 2020

(EQ) Ao largo de Bornholm


Às vezes o zapping propicia o remexer da memória e de lá trazer recordações há muito esquecidas. Aconteceu-me esta noite, quando dei com um documentário sobre o lixo tóxico ao largo da ilha dinamarquesa e verdadeira bomba em potência, capaz de devastadores efeitos ao retardador nos anos vindouros. Há setenta e cinco anos, quando se viram a contas com volumes significativos de armas químicas alemãs, os Aliados embarcaram-nas nos navios nazis e afundaram-nos nas profundezas do mar Báltico. O problema é a corrosão estar a abrir brechas nos obuses e outros equipamentos balísticos, que as continham e misturarem-se com o meio marinho, causando queimaduras e outras lesões em incautos pescadores, que têm a desdita de encontrar nas redes esses conteúdos venenosos e, quase por certo, nos consumidores dos peixes pescados nessas águas, e também eles, contendo sinais dessa contaminação.
Nazis e consequências assustadoras: um cocktail, que me devolveu a memória sobre esse outono de 1988 quando, acabada a temporada anual de três meses e meio nos fiordes noruegueses e islandeses com escala obrigatória em Gotemburgo, o Funchal foi fretado por uma organização nazi alemã para uma viagem de quatro ou cinco dias pelas costas bálticas e do mar do Norte.
Nos anos passados a bordo do conhecido paquete acostumei-me a preencher algumas horas livres no cinema de bordo e a cear no Tasco, o bar situado no piso da chaminé, também o último a fechar, quando quase todos os passageiros tinham recolhido aos seus camarotes. Uma vez por outra também bebia um ou outro copo no Porto, o bar que a maioria preferia e funcionava a horas menos noctívagas.
Nessa viagem cedo senti que não seria como as outras. A habitual alegria dos que embarcavam para uns dias de lazer viu-se substituída pelas expressões fechadas, diria quase que crispadas, daqueles com que me cruzei.
A primeira refeição, no Salão Ilha Verde, trouxe notícia do que caracterizariam os dias seguintes.  O Fernando, médico de bordo, deu razão à minha habitual predisposição para almoçar na messe dos Oficiais, evitando o transtorno de vestir o dólman para corresponder à etiqueta estabelecida. O que ele encontrara fora assustador: os passageiros eram nazis convictos, que não escondiam o que pensavam e até pretendiam fazer da viagem um périplo de homenagem aos seus, caídos em combate naqueles mares, a bordo de navios acamados no leito marinho.
A programação do cinema de bordo estava a condizer, toda ela composta de filmes da UFA entre 1933 e 1945, com particular destaque para os êxitos mais conhecidos nos propósitos de propaganda. Leni Riefenstahl, o judeu Süss e outros que tais.
E o meu próprio trabalho ficou condicionado pela vontade de tão desagradáveis criaturas: como os pontos de paragem eram muitos na carta de navegação, amiúde, tinha de vestir o fato de trabalho e descer à casa das máquinas para as operar de acordo com as instruções da ponte, nas manobras que culminavam na paragem no sítio escolhido, altura em que havia quem, no convés superior, pronunciasse discursos a antecederem o ato de atirarem para o mar as coroas de flores adornadas com suásticas. No último dia foi com Bornholm à vista que decorreu a mais duradoura e relevante cerimónia dos convivas.
Era imensa a revolta por estar a trabalhar para nazis sem nada fazer para os contrariar. Embora lamentasse profundamente que, para ganhar uns cobres, o George Potamianos tivesse aceite tão execráveis clientes.
Aquele foi a viagem no Funchal em que não saí do percurso triangular entre a casa das máquinas, a messe e o camarote. Fazendo os possíveis por deparar-me o menos possível com aquela gente. Nada de jantares no salão, copos no Porto ou sandochas no Tasco. E a demonstração plena de não serem os nazis nenhumas figuras de opereta. Pelo contrário melhor os definiria como personagens de verdadeiro filme de terror...

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