segunda-feira, setembro 07, 2020

(DIM) Amar-me-ão quando morrer, Morgan Neville, 2018


Está atualmente em exibição na plataforma Netflix um daqueles filmes, que os wellesianos militantes tomam como de visão obrigatória, mesmo não suscitando o mesmo fascínio de Os Olhos de Orson Welles, que Mark Cousins realizou no mesmo ano e ficou para mim como o melhor de quantos filmes vi  no ano passado.
Estamos perante um making of do filme que, possivelmente Welles mais amou, e lamentou não ter concluído. Ou não? Personalidade contraditória por excelência há quem duvide se melhor lhe importou todo o processo envolvido na sua produção e realização entre 1970, quando o iniciou, e 1985, quando a morte lhe sonegou a possibilidade de se dedicar à montagem definitiva. Por essa altura já a película fora abarbatada pelos financiadores iranianos (nomeadamente o cunhado do antigo xá), que enlearam o realizador num imbróglio judicial concluído com a sua derrota em primeira instância.
O Outro Lado do Vento - era assim que se chamava esse filme jamais chegado ás salas! - continha duas histórias distintas. Numa ele replicava ironicamente o cinema europeu então na moda - mormente Antonioni - com a história da perseguição de um rapaz fascinado por uma mulher até conseguir com ela fazer amor dentro de um carro.  Esta parte do filme servia para Welles dar a Oja Kodar, o seu derradeiro amor, a possibilidade de revelar-lhe a intrigante beleza. E, quiçá, espicaçar os inconfessáveis fantasmas eróticos da sua mente.
A outra história passa-se na mansão de um famoso realizador, que não imagina estar a viver as derradeiras horas da sua longa vida.  Ele é interpretado por John Huston, o amigo que lhe serve de alter ego numa espécie de testamento, que chegou a lamentar não ter sido ele próprio a interpretá-lo. E Peter Bogdanovitch - então à beira de ter uma entrada de leão em Hollywood com The Last Picture Show! - faz dele mesmo em jovem.
Numa escolha arriscada, porque se torna confusa, Morgan Neville vai detalhar as vicissitudes por que passou a produção, ilustrando-a através de curtos extratos de dezenas de filmes, a maior parte de Welles, mas também de outros realizadores. Intermedeia esse relato com muitas entrevistas com quem participou na rodagem, ou a soube por aproximação familiar - os casos da filha de Welles e do filho de John Huston.
Bogdanovitch revela o lado luminoso do mestre, aquele que o fez render-se a tudo quanto ele lhe ordenava sem perceber patavina do que tratava o filme, mas também o outro, o mais sombrio, lembrando a forma como o traíra numa entrevista televisiva depois de por ele ser albergado durante três anos de bulímica depressão.
Welles que dizia preferir trair os valores do que os amigos, demonstrara nesse exemplo a sua duplicidade. A mesma que o levara a inserir no filme claras alusões a outros cineastas - mormente a Bergman - que pretendia ridicularizar.
A verdade é que, à medida que Neville nos vai lembrando os maravilhosos filmes que ele realizou, fácil é compreender tudo desculparem do seu execrável feitio para alguns dos mais próximos colaboradores, capazes de por ele se excederem e sacrificarem, mas facilmente despachados com um imerecido chuto no dito cujo.

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